
Palavras não ditas
Sem desejar o mal a ninguém, mas por pura suposição, dá par pensar a respeito sem estar diretamente envolto nessas circunstâncias. Assim, nessa condição, fica mais fácil racionalizar. Imagine que a vida de alguém esteja transcorrendo normalmente, com aqueles conhecidos altos e baixos do cotidiano. De repente, num exame rotineiro qualquer, descobre-se uma doença séria com prognóstico muito desfavorável. Quem sobrevive a um acidente, sai ileso de um assalto ou consegue curar uma doença grave costuma dizer que nasceu de novo e muda o jeito de encarar a vida. A iminência da morte provoca reflexões profundas e, na grande maioria das vezes, resulta em grandes transformações. Quando o desfecho ruim torna-se inevitável, outras questões difíceis precisam ser enfrentadas. Quem deve ser resgatado nesses últimos dias, quais as amizades que sobreviveram à passagem do tempo e o que fazer com aquilo que possui mais valor? Afinal de contas, o que de fato importa nessa vida? Num mundo de tantas discussões libertárias, ainda falta uma para ser discutida abertamente, principalmente em países latinos: a liberdade para morrer. O ser humano tem o direito de escolher a forma como quer chegar ao final, submetendo-se a quimioterapias, a tratamentos extenuantes ou renunciando à luta para abreviar o sofrimento?
No recorte feito em torno de um personagem fictício, um homem diagnosticado com um câncer fatal, que se espalhou rapidamente pelo corpo, exterioriza suas sentimentalidades nos últimos dias de vida. Na hierarquia das prioridades do doente terminal, esse lobo solitário, já completamente desapegado das questões materiais, concentra-se na escolha de alguém que seja merecedor de herdar o bem mais precioso que adquiriu na vida: o inseparável cachorro chamado Truman. Não há herança nenhuma para deixar, apenas o cão fiel por quem nutre verdadeira paixão. Depois de procurar alguém aleatoriamente, chega à conclusão de que a melhor pessoa para ficar com o seu ente querido só poderia ser mesmo o seu melhor amigo.
Ao revisar as razões dos vínculos com o melhor amigo, o personagem descobre que esse longo relacionamento não está completo, na verdade, apesar da proximidade que manteve durante anos, essa longa parceria está cheia de buracos, ou seja, mesmo nessa história de amizade tão duradoura faltam os grandes pedaços das palavras que nunca foram ditas. Num diálogo quase derradeiro, os dois trocam as perguntas que nunca foram feitas. O que um havia ensinado ao outro? O amigo que está doente responde que admira a generosidade do companheiro, que nunca pediu retorno das coisas que fez por ele. Depois de hesitar um pouco, o outro respondeu que a maior virtude do amigo, que está às portas da morte, era a coragem com a qual sempre enfrentou as situações mais complicadas. Apesar de estar com os dias contados, a amizade entre eles se fortalece. As relações masculinas, seja de amor ou de amizade, ainda sofrem com essa omissão e precisam se libertar daquele silêncio doído que aperta o coração. Tudo aquilo que não é dito, um belo dia, diante de uma visita inesperada, pode assumir uma importância imensa. Às vezes, não dá mais tempo de fazer a declaração. Apesar das inúmeras mudanças no comportamento humano, o choro e a sentimentalidade masculinos ainda são águas submersas.
Apesar de parecer um daqueles instigantes filmes do diretor Pedro Almodovar, Truman é um filme espanhol, do diretor Cesc Gay, gravado em Madri, com a tarimba do ator argentino, Ricardo Darín, que leva um tête-a-tête com o ator espanhol, Javier Câmara, esse sim, figura carimbada nos filmes de Almodovar. O belo ensaio sobre a solidão, as amizades e as despedidas parte de uma ideia muito simples: a necessidade de demonstrar o amor para pessoas ou animais que ainda estão vivos.
A propósito do tema, das telas para a vida real. Lá nos anos 80, os jogadores Sócrates e Casagrande foram amigos muitos próximos, mas pelos descaminhos da vida acabaram se afastando. Quando soube que Sócrates estava em coma, Casagrande se deu conta que gostaria de dizer muitas coisas ao amigo. Aí lamentou que já não dava mais tempo. Na semana que passou, o famoso comentarista da Rede Globo passou por Ribeirão Preto para lançar, junto com o jornalista Gilvan Ribeiro, o livro intitulado: Sócrates e Casagrande, uma história de amor.