A pequena grande infração

A pequena grande infração

O austríaco Ludwig Wittgenstein não figura na lista dos filósofos mais conhecidos, embora tenha influenciado a virada linguística na filosofia do século XX. Em uma vida cada vez mais corrida e superficial, os pobres mortais não dispõe de muito tempo para estudar pensamentos tão complexos sobre a existência. Contudo, cada autor tem algo que marca a sua filosofia, um extrato concentrado que seria uma espécie de perfume das suas ideias. Para os experts da filosofia, Wittgenstein divide a realidade entre atômicos e complexos, afirmando que os estados das coisas são mutuamente independentes. O mundo real está contido no conjunto de possibilidades. A lógica de pensador se baseia na relação entre o mundo possível e o mundo real. “A proposição é figuração da realidade; pois conheço a situação representada por ela quando entendo a proposição. E entendo a proposição sem que o sentido me seja explicado”, pensou Wittgenstein.

Essa dualidade entre o universal e o particular aparece, mesmo que, simbolicamente, nas pequenas histórias do cotidiano, capazes de confrontar valores éticos, morais e até mesmo as normas legais. Essas dicotomias colocam em lados opostos, o grande e o pequeno, o dominador e o dominado, o rico e o pobre, o indivíduo que integra o sistema na sua plenitude e o marginalizado. Recentemente, uma dessas histórias corriqueiras ganhou enorme repercussão na mídia, sendo inclusive objeto de uma reportagem do Fantástico da Rede Globo. A história da faxineira de 32 anos flagrada comendo um bombom na sala do delegado da Polícia Federal, Agostinho Cascardo, em Boa Vista, no Estado de Roraima, foi um dos assuntos mais comentados do país. A ocorrência, classificada pelo delegado como furto qualificado, provocou um oportuno questionamento sobre a ética, a aplicação da lei e o comportamento das pessoas.
Embora o “furto” tenha ocorrido dentro de uma instituição que, teoricamente, tem o dever de seguir a lei ao pé da letra, as pessoas que acompanharam o caso consideram desproporcional a atitude do delegado que registrou um boletim de ocorrência para a subtração de um solitário bombom. O delegado e a Polícia Federal ainda foram acusados de coação, abuso de autoridade ao registrarem uma ocorrência para o qual não tinham competência. Além disso, a faxineira e a responsável pela empresa de vigilância denunciaram que a PF, tal qual Salomé, pediu a cabeça da funcionária por justa causa. Se acusação for procedente, o dominador mostrou as suas garras afiadas ao dominado.

Para o caso em questão, a “punição” mais equânime seria uma advertência do delegado, que respaldado pela gravação da câmera, poderia dar uma lição educativa à faxineira. Mesmo que o objeto furtado tenha um valor irrisório, a atitude da faxineira não foi correta. As pequenas transgressões abrem uma porta perigosa para a consumação de ilícitos maiores. Sozinha, em uma sala, pensando que não estava sendo observada por ninguém, a empregada não viu nada de mal na subtração da guloseima, o que remete a uma questão desafiadora e intrigante que o filósofo austríaco certamente estenderia a todas as pessoas. Da ação particular para o comportamento universal: quem é você e como você se comporta quando não há ninguém te olhando?

Receosa de represálias, até hoje a faxineira se esconde no anonimato. Ficou com medo de ser hostilizada nas redes sociais. Se tivesse pensado um pouco mais, a trabalhadora certamente concluiria que o crime não compensa. Posteriormente, ela reconheceu isso em uma entrevista. Embora tenha recebido mensagens solidárias de muitas pessoas, a faxineira se arrependeu de ter comprometido a sua ética que ficou exposta publicamente em âmbito nacional.

Em breve, um fato corriqueiro como esse será esquecido, diante de uma avalanche de novos escândalos com cifras bilionárias. Mesmo que sejam casos separados por um abismo, tanto a corrupção do país quanto o pequeno deslize da faxineira tem na raiz o mesmo mal: o esfacelamento da ética como elemento regulador das condutas. Assim ocorre, quando o motorista infrator tenta subornar o guarda, quando alguém paga pedágio para usufruir de um atendimento diferenciado ou até mesmo quando o interesse público é submetido ao interesse privado. Mesmo que a generalização seja incorreta, se estivesse vivo, Ludwig Wittgenstein aplicaria a sua lógica universal e estenderia o dilema da questão ética a todos os cidadãos. Por ora, por conta de casos com essa repercussão, aparentemente, o placar geral mostra que a ética está sucumbindo diante da vilania.

Revide Online

Compartilhar: