
A percepção intuitiva
"Tocando em Frente”, música cantada por Almir Sater e composta por Renato Teixeira, tem um verso que embasa debates do universo pessoal e até mesmo do mundo corporativo. A letra diz que “cada um de nós compõe a sua história, cada ser em si carrega o dom de ser capaz”. Embora a bela sonoridade da melodia, os dois versos são meias verdades, uma vez que só uma parte da história, de fato, pode ser composta pelo próprio autor. Outra parte significativa da existência esbarra nas circunstâncias, nas fatalidades e, muitas vezes, bate de frente com os duros limites impostos pelo sistema.
No caso brasileiro, sempre muito atípico, ainda estamos atravessando um largo período da “culpabilidade das vítimas” que impede os grupos vitimizados de serem felizes. Pelo consenso da maioria, os negros e os pobres são culpados pela sua pobreza. As mulheres que usam roupas mais ousadas são responsabilizadas pela violência que sofrem. Quando a economia quebra e a cidade está infestada pelas doenças, a culpa recai só nos ombros do presidente e do prefeito. Quem escolheu através do voto esses representantes se isenta de qualquer responsabilidade. Na Europa, agora, esse fenômeno da “culpabilização terceirizada” se repete. Os refugiados, massacrados em seus países de origem, são apontados como os grandes vilões do terrorismo internacional.
Por essas e outras nem todo mundo consegue dançar conforme a música, seguir tocando em frente, compondo a própria história. Mesmo assim, uma lenda, originária provavelmente da pura superstição, vai ao encontro da letra, alimentando a esperança de que cada ser humano carrega mesmo em si alguns dons que o tornam capaz de conduzir bem a própria história. Essa lenda remota diz que o universo seria um brincalhão inveterado que enterra as nossas joias pessoais bem no fundo, em local de difícil acesso. Para encontrar esse baú recheado de talentos, são necessários anos de escavação por túneis apertados e não muito bem iluminados. Enquanto isso, o sarcástico universo fica à espreita, observando se ganharemos ou perderemos esse jogo de gato e rato.
Essa mesma lenda ensina que essas dádivas da vida só serão alcançadas por aqueles que saírem do quadrado da mesmice e conseguirem cultivar as virtudes da leveza, da criatividade e da intuição. Infelizmente, uns tantos só vivenciam a pobre experiência mundana, traduzida na enfadonha sucessão dos dias. Outros correm atrás de experiências mais excitantes. Esses, andando um pouco devagar, sem tanta pressa, deixando a inspiração flutuar, ir e vir pausadamente, conseguem se divertir no percurso.
Entre a leveza, a criatividade e a intuição, esta última certamente impõe mais dificuldades, pois implica na capacidade de ver com os sentidos. Eis uma das essências da sabedoria: o desenvolvimento de um olhar analítico, com capacidade para desvendar aquilo que não está ao alcance dos olhos. A intuição busca respostas onde, aparentemente, elas não estão. Em uma época em que as máquinas podem fazer quase tudo, a mente humana continua com a reserva desse mercado, muito apreciado pelas empresas modernas. O talento da intuição torna o ser humano capaz de antecipar, de prever e de pressentir, sem a necessidade de utilizar os recursos da lógica racional. Infelizmente, as vidas humanas estão ficando cada vez mais presas a um comportamento serviçal, rotineiro e cartesiano. Tudo está ficando muito igual, parecido, mas só os intuitivos conseguem enxergar e perceber o que ninguém está vendo.