A pirâmide de ponta-cabeça

A pirâmide de ponta-cabeça

O jornalismo atravessa um momento crítico. A pirâmide representa o conceito da relevância, pela lógica que prioriza, o que tem mais importância. Contudo, no momento, as pessoas estão cada vez mais interessadas em notícias de pouca relevância, enquanto o mais importante, a matéria-prima do jornalismo, está passando ao largo. Para perceber isso basta ir retrocedendo na pauta dos últimos dias, das últimas semanas e dos últimos meses. Principalmente nas redes sociais, a atenção da opinião pública se desvia para assuntos que não deveriam ocupar tanto espaço. O último fato que “bombou” foram imagens chocantes dos corpos do cantor sertanejo, Cristiano Araújo, e da sua namorada. A tecnologia transformou cada cidadão no jornalista on-line da vez, com poder de publicação, mesmo que a pessoa não tenha formação, preparo ou o mínimo de ética para isso. Assim, a partir da filmagem indevida feita pela funcionária de uma clínica especializada em reconstituição visual de corpos dilacerados por mortes violentas, as impublicáveis imagens rodaram o país. Quem viu as fotos diz que eram fortíssimas, até se arrepende de ter olhado, mas, mesmo assim, o nefasto post/notícia ganhou proporções gigantescas.

Esse comportamento inapropriado do internauta comum reproduz um pouco da ânsia insana do jornalismo para chegar primeiro com a notícia quentinha, mesmo que para isso seja necessário não conferir a veracidade da informação e atropelar o bom senso. Os teóricos da comunicação sempre alertaram para os perigos dessa fatal atração pelo mórbido. Hoje, na sociedade midiática, há uma primazia das imagens sobre as ideias do texto. A privacidade e a individualidade estão se perdendo. O navegador que digita freneticamente se confunde entre fatos e boatos, entre mentiras e verdades. Inconscientemente, passa a fazer parte da massa descontrolada, que ao reproduzir posts, instintivamente, expõe facetas primitivas do comportamento, alienando a si mesmo e aos outros. Isso explica em parte a sanha pelo compartilhamento de imagens cadavéricas.

Até mesmo a imprensa que se propõe a ser mais equilibrada encontra dificuldades para resistir ao avanço dessa morbidez insensata que se apresenta com sede de sangue, de catástrofes e de notícias bizarras. Não se trata de aspirar por um noticiário perfeito, sem crimes, banalidades e frivolidades. Esses acontecimentos também fazem parte do cardápio do interesse, mas não é aceitável ver a time-line virar a pirâmide de ponta-cabeça. O pior é que, nesse processo, a falta de bom senso se alastra tanto nas camadas populares quanto na “elite pensante”. A legião de provedores inconsequentes todos os dias ganha um novo integrante, alguns de forma deliberada, outros de forma impensada. O sensacionalismo leviano também contamina celebridades e até jornalistas experientes. A última contribuição inconveniente a essa inversão de valores veio do global Zeca Camargo que resolveu criticar, em uma crônica na TV, o trabalho musical de um cantor sertanejo que mal havia sido enterrado. Respeitado o direito de opinar, criticar de forma tão dura, no auge da comoção, quem já morreu e não pode se defender, joga mais água no caldeirão da insensatez. Em resposta a uma crônica inoportuna, surgiu nas redes sociais uma onda de respostas raivosas. Há pouco tempo, o cantor Ed Motta rasgou o verbo contra os “brazucas” que atrapalham os seus shows no exterior, pedindo para ele cantar em português as músicas que não estão no roteiro. Rafinha Bastos, que fez fama no CQC, acaba de ser condenado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em R$ 150 mil por danos morais. Em 2011, o apresentador, sem mais nem menos, disse que “comeria a Wanessa Camargo e o seu bebê”. A decisão da Justiça indenizou a família inteira, Wanessa, o marido e até o bebê, R$ 50 mil para cada um.

Nas páginas amarelas da Veja, edição de 1º de julho, um dos mais sóbrios intelectuais vivos do mundo, o italiano Umberto Eco radicalizou na sua avaliação sobre esse tema ao declarar que está em curso “a conspiração dos imbecis”, definição que serviu de título para a entrevista. Eco esclareceu à Veja que não se referiu ao caráter das pessoas, mas criticou o fato de elas estarem opinando, excessivamente, sobre assuntos que não entendem. “Num mundo com sete bilhões de pessoas, você não concorda que há muitos imbecis?, indaga o escritor. De fato, o mundo está com mais informação e menos conhecimento. Nesse grotesco caldo noticioso que se forma todos os dias, a sociedade está perdendo a noção de relevância, o espaço de reflexão e o poder de assimilação gradativa. Esses são pressupostos educativos que devem fazer parte da essência do jornalismo para filtrar, distinguir, apurar e analisar informações. A instantaneidade, a resposta automática, a leitura apressada e superficial favorecem a manipulação e não se coadunam com a capacidade para reconhecer abordagens distintas. Gradativamente, essa perda da capacidade analítica trazida pelas mídias sociais, que substituem o papel do jornalismo, pode comprometer a percepção da realidade. É como se o mundo passasse a ser visto através daquele vidro grosso, verde, que tem no fundo da velha garrafa.

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