
A poeira dos votos
A disputa intensa entre os dois partidos que concorreram no segundo turno da eleição presidencial prosseguiu com as interpretações díspares dos resultados. Mais do que a análise política do significado da decisão em si, se foi melhor ou pior, também é importante avaliar o processo eleitoral, porque nele reside a garantia da lisura e da transparência deste e dos futuros resultados. Em menos de quatro horas em relação ao final da votação, o país conheceu o novo presidente. Dos 142 milhões de eleitores aptos a votar, um total de 112 milhões brasileiros compareceram às urnas. Mesmo em um país de dimensões continentais, com urnas transportadas em barcos, não houve contestação do resultado e as escassas tentativas de fraudar o processo foram reprimidas pela Justiça Eleitoral. A biometria, mais um avanço nessa transparência do processo, foi implantada com sucesso e, em breve, será uma realidade em todos os locais de votação. Os mais antigos devem lembrar que as primeiras eleições das décadas de 70 e 80, até a introdução da votação eletrônica, produziam resultados duvidosos com a contagem manual e a descarada compra de votos.
Hoje, os corruptos declarados enfrentam cada vez mais dificuldades para concorrer. Alguns foram obrigados a renunciar durante a campanha. Os “showmícios” e a compra de votos com brindes baratos agora fazem parte de um passado que não deixa saudades. O eleitor antenado já sabe que até o “selfie” dentro da cabine de votação está proibido. Depois do fiasco da Seleção Brasileira na Copa do Mundo, talvez seja o processo eleitoral brasileiro um dos raros indicadores com padrão internacional. Não se pode ser ingênuo e pensar que esta é a fórmula ideal, mas desde que o país retomou o processo de redemocratização os avanços são inegáveis. Apesar das restrições da legislação, as vitórias eleitorais continuam sendo compradas com dinheiro, marqueteiros espertos fazem a diferença e o jogo sujo ainda tira votos. Em um sistema capitalista, um passo importante rumo à utópica igualdade entre concorrentes será a redefinição de um novo mecanismo para o financiamento das campanhas, para minimizar, ao máximo, a influência do poder econômico. A menção aos mecanismos eleitorais e a própria votação se torna fundamental, pois somente o aperfeiçoamento do processo poderá restabelecer o equilíbrio entre governo e oposição. Para que o resultado seja aceito, as regras do jogo propostas pelas instituições precisam ser claras e a arbitragem não pode vacilar sob pena de comprometer a credibilidade eleitoral. Sem precisar viajar à Rússia ou à Croácia, basta olhar o processo que se desenrola na Argentina e na Venezuela para vislumbrar a que ponto a radicalização institucional pode conduzir a democracia de um país. A famosa virada de mesa resulta na prisão de opositores e na censura da imprensa.
Essa eleição deixou sequelas com manifestações preconceituosas nas redes sociais, pedindo até a segregação do Nordeste. Só para citar um exemplo ressentido de cada lado, a militância petista impediu que a candidata eleita, Dilma Rousseff, no discurso na comemoração da vitória, fizesse qualquer menção protocolar ao candidato derrotado Aécio Neves. Por sua vez, eleitores do PSDB imputaram a derrota aos nordestinos, ignorando que o candidato perdeu a eleição no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, estado que governou por dois mandatos. Como todo país capitalista, o Brasil é um país dividido desde o descobrimento, entre ricos e pobres, entre brancos e negros, entre conservadores e progressistas, entre o campo e a cidade, entre excluídos e incluídos, entre os que sonham e os que nem podem sonhar. Não se trata nem de uma divisão ideológica nesta salada mista em que virou a representação partidária brasileira. Alguém duvida que milhões de eleitores ricos e de classe média alta votaram na Dilma e que milhões de eleitores das classes C e D votaram no Aécio?
A grande questão que se coloca para o governo eleito e para qualquer outro que se apresente futuramente é como essas diferenças serão resolvidas. Embora isso, no momento, esteja ofuscado pelo calor do conflito, o bom senso nunca tem um lado único. Num passado não muito distante, houve uma experiência traumática de tentar resolver as diferenças pela força das armas. O resultado deixou sequelas que não se apagaram até hoje. Está aí a Comissão da Verdade. Também não dá para se iludir. Por ora, o discurso da reconciliação e da unidade nacional não passam de retórica na boca de governantes e de opositores ressentidos. Talvez a divisão que melhor defina a política nacional no momento seja a velha dicotomia entre governo e oposição. A eleição engrossou o caldo da política, mas o país avançará mais rápido se as duas forças políticas de maior expressão encontrarem campos de convergência. A reforma política também precisa passar pela renovação das práticas e das teorias. Em síntese, a governabilidade depende da correlação de forças. Mais do que nunca, a recuperação da cidadania para milhões de brasileiros gira em torno da negociação entre o governo e a oposição.