
Por uma nova carta
A semana que passou foi marcada pela simbologia das datas que, ao serem relembradas, trazem ao presente o contexto histórico ao mesmo tempo em que reafirmam valores que se diluem com a passagem dos anos. A primeira data importante da semana foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos, estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. O documento, uma tentativa de consagrar a igualdade no mundo, foi assinado em 1948. Setenta anos depois, não houve mais nenhum conflito mundial de grandes proporções, mas a criação da ONU e a declaração dos Direitos Humanos não foram suficientes para impedir que dezenas de conflitos bilaterais e multilaterais ocorressem.
Mesmo que a utopia seja um estado pleno que nunca poderá ser alcançado, por outro lado, essa busca constante pela igualdade faz com que a humanidade caminhe, se mantenha nesse rumo, sem deixar perseguir essa igualdade que talvez nunca seja alcançada. Era essa a ideia que predominava na época em que a carta dos direitos humanos foi escrita. O mundo traumatizado acabara de experimentar os horrores da guerra, dos campos de concentração, das execuções sumárias e das perseguições de natureza étnica e religiosa. A declaração dos direitos humanos propôs de maneira muito enfática uma coletânea de princípios morais e éticos que deveriam nortear o comportamento da humanidade. Algo relativamente simples de conceber, mas difícil de pôr em prática. Os homens e as mulheres de todos os povos do planeta deveriam ter direito à liberdade e uma vida digna, protegidos de qualquer tipo de preconceito e ameaça. Ninguém deveria ser maltratado, passar fome, sofrer algum tipo de violência ou ser perseguido pela sua orientação religiosa. Se a carta fosse reescrita hoje, precisaria dar ênfase ao combate às discriminações sexuais. Estrategicamente, coube a uma mulher o papel de destaque na promulgação dos novos direitos. A escolha da viúva do ex-presidente americano Franklin Roosevelt, Eleonor Roosevelt, foi intencional, justamente para reafirmar o papel que a mulher deveria ter na nova sociedade que se pretendia inaugurar.
Mesmo que não tenha força legal, pois nenhum país está obrigado a cumprir o que está escrito, a carta ganhou uma simbologia universal e foi adotada como um preceito a ser cumprido pela grande maioria dos países. Apresentados em escala mundial, os princípios da Declaração dos Direitos Humanos parecem distantes da realidade do cidadão comum, mas na verdade estão mais próximos do que se imagina. Nesses 70 anos, nenhuma bomba atômica foi jogada novamente, mas as atrocidades, de fato, nunca cessaram, seja entre países, entre vizinhos e até mesmo familiares.
Quem observa hoje a geopolítica mundial fica com a sensação de que o mundo necessita de uma segunda edição da Declaração dos Direitos Humanos. A intolerância prospera nas redes sociais. Uma onda nacionalista varre o mundo, resultando na rejeição dos estrangeiros. Permanecem vivas e intensas as perseguições de natureza religiosa, sexual e étnica. Guerras transformam milhões de pessoas em refugiados. Na virada do século, o mundo ficou mais intolerante, mais agressivo, mais beligerante, menos solidário, menos flexível e menos harmônico. Esse retrocesso não pode ser debitado apenas na conta dos dirigentes e dos governantes que, na maioria das vezes, expressam a média das opiniões dos representados.
Precisamos de uma nova cultura que promova a educação e o respeito nas ações mais cotidianas e elementares. A liberdade e a observância às regras da fraternidade precisam ser preservadas. As mulheres não podem continuar sendo vítimas de falsos religiosos. As crianças não podem ficar expostas ao assédio de adultos sem escrúpulos. Não se pode fazer apologia à indústria das armas como solução dos problemas. Embora esses princípios até possam ser escritos por um grupo de iluminados, em algum lugar do planeta, esse sentimento precisa brotar em cada canto do mundo, em cada país e em cada cidade. O Natal e o fim de ano são momentos propícios para que essa cultura renasça com força para se contrapor ao nacionalismo exacerbado e a xenofobia violenta que ameaça contaminar o mundo, como se fosse uma sinistra bomba atômica das relações humanas. Nem tudo está perdido, pois os humanos do bem ainda são maioria no mundo.