
Posts da intolerância
As vozes da intolerância têm se levantado no Brasil com certa frequência e é muito bom que isso ocorra. Assim, vai se desmistificando a falsa ideia de um país cordial, sem preconceito ou discriminação, onde predominam ideais democráticos. Isso fica evidenciado na aceitação dos políticos que defendem a volta da ditadura, os retrocessos políticos ou modelos de governo que fracassaram rotundamente em outros países. Está aí o caos da Venezuela. A morte da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, no Rio de Janeiro, expôs de forma estarrecedora os posts da intolerância, principalmente nas redes sociais, onde a liberdade de expressão também serve para explicitar o preconceito.
Logo que a execução ocorreu todos os veículos de comunicação profissionais e com algum grau de credibilidade deram a devida repercussão diante da gravidade do crime. Única, a vida de qualquer pessoa deve ser respeitada dentro dos limites da lei. A bíblia diz que matar alguém é pecado e a lei estabelece, que salvo em legítima defesa, trata-se de um crime. No entanto, quando a pessoa assassinada é um policial, um parlamentar, um jornalista, um representante do judiciário, um líder comunitário ou um ativista dos direitos humanos esse crime atenta contra a própria sociedade e a democracia. Alguém matou ou mandou mandar para impedir que a sociedade saiba de algo ou que a atividade da vítima tivesse algum desdobramento. Por isso, a gravidade do assassinato aumenta e torna-se uma questão de honra para as forças de segurança desvendar o crime e punir os culpados. O francês Bertold Brecht tem um texto singelo em que faz alusão ao perigo da indiferença. Essa metáfora do escritor ensina que se hoje matam um vereador e ninguém faz nada, amanhã matarão o prefeito, o governador, o juiz, o jornalista e até o presidente.
Logo que o crime aconteceu, milhares de pessoas de várias regiões do país, incluindo artistas, cidadãos comuns e profissionais de mídia demonstraram a indignação e pediam rigor na apuração do crime. Ao mesmo tempo, circularam nas redes sociais mensagens preconceituosas que atacavam a reputação da vereadora morta, dizendo que ela era mãe solteira, negra, lésbica, ativista dos direitos humanos e que teria sido casada com um grande traficante do Rio. O texto afirmava ainda que a sua campanha eleitoral teria sido bancada pelos traficantes, o que se revelou falso, pois foi provado que a vereadora recebeu votos em vários colégios eleitorais. Também não era verdadeiro o casamento com o traficante. Para espanto geral, as acusações infames ganharam guarida de muitas pessoas aparentemente sensatas, que sem questionamento repassaram essas mensagens para frente. Entre elas, estavam o deputado federal do DEM, Alberto Fraga, e a desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio, Marilia Castro Neves. Na condição de integrantes do poder Judiciário e do Poder Legislativo, os dois ilustres representantes públicos deveriam saber que não se pode acusar alguém sem provas e que as opções sexuais e mesmo condutas políticas não justificam uma execução com nove tiros, disparados covardemente, sem qualquer chance de defesa. Diante da repercussão das declarações reacionárias e preconceituosas, a desembargadora e o deputado se retrataram, dizendo que se precipitaram em repassar informações sem checar. Melhor assim, mas o episódio só deixará um legado positivo se servir para que os incautos das redes sociais reflitam sobre os malefícios provocados pela disseminação de “fake news”.
A maioria costuma ser silenciosa e felizmente a onda de comentários reacionários nas redes sociais não pode ser interpretada como uma expressão do pensamento médio brasileiro. Pesquisas feitas por instituições especializadas revelaram que 90% das milhões de mensagens sobre o crime que circularam na internet eram de solidariedade, menos de 10% eram das vozes intolerantes, sequiosas por encontrar algum desvio no comportamento da vítima para justificar a saraivada de balas e argumentar que a imprensa estava exagerando. Em defesa da memória da vereadora reagiu com firmeza o pai de Marielle Franco ao dizer que “poucas pessoas no país têm moral para falar mal da minha filha”.
Também cumpriram bem o seu papel os principais órgãos de imprensa do país com destaque para a Rede Globo. A intensa cobertura jornalística tenta impedir que o assassinato da vereadora entre para a enorme lista de crimes não esclarecidos. Uma história macabra como essa não pode mais ter um final feliz, mas a dor e o sentimento de justiça podem ser atenuados se os culpados forem punidos. A sociedade também dará um passo adiante se a morte de Marielle servir para diminuir a intolerância e fazer com que as pessoas aprendam a valorizar e a respeitar a vida até mesmo de quem age e pensa de maneira diferente.
Foto: Facebook/Marielle Franco