A queda de um mito

A queda de um mito

A sexta-feira, 4 de março, foi sacudida pela prisão do ex-presidente Lula, um retirante nordestino que chegou a São Paulo, nos anos 60, num caminhão de pau de arara. Até a presidência da República, Lula perdeu um dedo da mão, virou dirigente sindical, fundou o PT e governou o país por dois mandatos. Perto da realidade atual, seu governo pode ser considerado um mar de prosperidade. Na época, até os adversários políticos eram obrigados a reconhecer os êxitos de sua administração. Sua popularidade era tão alta que Lula foi chamado de “o cara” por Barack Obama.

O tempo passou. Lula começou a ser bombardeado com o “mensalão” e logo depois com o “petrolão”. À medida que as investigações se aprofundaram, ficou cada vez mais evidente que Lula e depois Dilma Rousseff eram os grandes beneficiários de um gigantesco esquema de corrupção para garantir a perpetuação do governo e o enriquecimento de alguns. Dirigentes do PT foram condenados pela Justiça, dois tesoureiros do partido acabaram presos e negócios espúrios foram revelados. Seguiu-se uma série infindável de delações premiadas de petistas e não petistas. Gente que estava nas entranhas do governo acabou confessando. Um dos mais expressivos deles, ex-líder do governo no Senado, Delcídio do Amaral afirmou que Lula e Dilma não só sabiam de tudo, mas que comandavam o esquema. No vocabulário petista, Delcídio, rapidamente, passou de líder eminente a traidor. 

Diante de tantas acusações, envolvendo até mesmo seus amigos e seus familiares, a biografia de Lula ficou muito parecida com a de Paulo Maluf, cuja longa ficha de ilicitudes, hoje, virou café pequeno. O destino de Lula divide emoções de amor e ódio, virou algo emblemático, pois envolve o passado recente, o presente conturbado e o futuro incerto do país. Os confrontos que ocorreram nas ruas deram uma prévia. Por isso, os ritos processuais passaram a ser importantes para que ninguém vire a mesa sob o argumento de que está sendo prejudicado pela arbitragem. A explicação oficial que Sérgio Moro deu, em nota, para a condução coercitiva de Lula não convenceu. O juiz alegou que marcar o depoimento poderia causar tumulto. Isso não justifica a coerção, a lei diz que essa obrigatoriedade só pode ser aplicada contra alguém que se recusa a comparecer espontaneamente à convocação da Justiça. Nessa hora de crise, os fundamentos da República precisam ser aplicados de forma integral, para enquadrar todos sem exceção, ao mesmo tempo em que se assegura o idêntico direito de defesa. 

Exceto pela coerção, a retórica petista não se sustenta e não há nenhum fundamento ético e moral. Sem defesa para denúncias de corrupção, o PT pede que outros ex-presidentes sejam investigados. Por suposto, desde o marechal Deodoro da Fonseca não deve ter havido um único governo no Brasil sem a mancha da corrupção. Por muito menos, Fernando Collor sofreu impeachment e José Sarney deixou o governo com a pecha de corrupto. Também houve muitos escândalos nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso. Recentemente, o passado nebuloso de FHC voltou à baila. A República que se pretende construir não aceita o “nós roubamos, mas eles roubaram também”. Também não há fundamento para responsabilizar a grande imprensa pelo clima que se instalou. A culpa pela onda de denúncias não é de quem publica. Justiça seja feita: a imprensa tem feito o seu papel. 

Se Lula recebeu honestamente R$ 20 milhões em doações no Instituto Lula e mais R$ 10 milhões pela sua grande expertise de palestrante, “só comparada a de Bill Clinton”, por que não pagou do próprio bolso o tríplex do Guarujá? Por que não fez um cheque de R$ 1,5 milhão para reformar o sítio Atibaia onde esteve por 111 vezes? Se o caixa estava honestamente tão gordo, por que razão não dividiu uma parte da fortuna com o Lulinha e os demais meninos para que eles não precisassem se meter em tantas enrascadas?

Só Lula pode responder por que foi tão ganancioso, uma vez que, de 2002 a 2010, engordou a poupança com o salário de presidente, mais casa, comida, roupa lavada e todas as mordomias presidenciais pagas pelos brasileiros. Lula escondeu os bens e sua fortuna para não acabar com o seu grande trunfo eleitoral. Apesar de milionário, quis manter a qualquer preço o marketing de nordestino pobre que tantos votos renderam. O líder do PT optou por escamotear a sua verdadeira condição para continuar sendo um homem do povão, um mito em que a massa acreditava e que permaneceu fiel às origens, apesar da ascensão ao poder. As pesquisas dizem que Lula não desfrutará mais da popularidade que tinha antes. Independentemente dos desfechos processuais e eleitorais, o político que já simbolizou a utopia e a esperança de uma geração perdeu sua credibilidade e manchou a própria biografia. Seu fracasso como líder reafirma uma máxima que há séculos afronta a dignidade do ser humano e está engasgada na evolução da República: o poder corrompe e ninguém resiste à tentação. 

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