
Racismo abominável
A discussão boba no trânsito, a séria briga familiar por causa de um motivo à toa e a crise de relacionamento no trabalho, por conta de uma questão irrelevante, são sinais claros de que a vida moderna está sob o controle de um impulsivo piloto automático. O resultado desagua numa sucessão de atos impensados que se tornam cada vez mais corriqueiros. As pessoas estão reagindo de forma instintiva, no puro reflexo, respondendo as demandas de forma precipitada, sem o cálculo das consequências. Frequentemente, essas histórias terminam com arrependimentos.O ato impensado do ano vai para a torcedora do Grêmio que numa única jogada cometeu uma grave injúria racista, ofendeu um jogador de futebol e um pai de família, perdeu o emprego e ainda causou um prejuízo enorme para o time do coração, excluído sumariamente de uma competição nacional importante. Patrícia Moreira também entrou para a história da discussão racial brasileira. Impingiu ao centenário Grêmio, um Clube campeão do mundo, detentor de uma torcida estimada em oito milhões de pessoas, composta por negros e por brancos, a vergonhosa pecha de clube racista. De quebra, ainda arrastou o Estado do Rio Grande do Sul para a nefasta vala do preconceito racial.
A jovem torcedora certamente desconhece que os negros escreveram páginas históricas do tricolor azul, branco e preto. O único campeão mundial que o Grêmio teve, titular de uma Seleção Brasileira campeã do mundo, foi o negro Everaldo Marques da Silva, lateral no tricampeonato do México em 1970. O autor do belíssimo hino do Grêmio, que possui um refrão contagiante, — “até a pé nos iremos, para o que der e vier, mas o certo é que nos estaremos, com o Grêmio onde estiver” — é de autoria do compositor negro, Lupicínio Rodrigues. O mais famoso jogador que o Grêmio revelou foi o negro Ronaldinho Gaúcho, eleito duas vezes o melhor do mundo. Como pode a torcedora dizer que ama o Grêmio e desprezar a cor dos principais personagens do seu Clube?
Hostilizada nas redes sociais, Patrícia ainda cometeu outro deslize quando concedeu, aos prantos, uma entrevista coletiva pedindo perdão pelo ocorrido. Por inúmeras vezes, pediu mais desculpas “à nação tricolor” do que ao goleiro Aranha, a vítima do crime de injúria. Independentemente das consequências judiciais que ainda possa a vir a sofrer, a torcedora, exposta a execração pública pela mídia do país inteiro, declarou estar arrependida do comportamento racista. No depoimento à Polícia, disse que injuriou o goleiro no embalo, junto com outros torcedores que xingavam o jogador. Pensou que o anonimato na multidão garantiria a impunidade do comportamento racista. Em casos como esse, a execração pública costuma ser mais dolorosa do que a pena judicial.
No campo dos atos impensados, a atitude de Patrícia está longe de ser um caso isolado. Desde que a filosofia foi abolida na escola parece que há uma enorme crise na faculdade do pensar. Se o conteúdo da disciplina tivesse sobrevivido, mesmo sem a formalidade do nome, jovens intempestivos como a torcedora, que se perdem com facilidade nas encruzilhadas da vida e acabam enveredando até pelos descaminhos do preconceito, saberiam que Sócrates não foi só um grande jogador, mas também um filósofo que iniciou o estudo da virtude humana. O professor de Platão encorajava a compreensão clara e fundamental das nuances da existência. Afirmava que o mais inteligente é aquele que sabe o quanto não sabe. Esse pudor natural evitaria que Patrícia entrasse numa enrascada tão grande. Afinal, são os pensamentos próprios que fazem a gestão de cada indivíduo.
A torcedora, mesmo com formação universitária, já havia postado no instagram um macaquinho vestido com a camisa do rival Internacional. Na entrevista, cometeu mais uma dissensão ao dizer que chamou o goleiro de macaco, sem a intenção de ser racista. Num imaginário diálogo de aconselhamento, Sócrates diria à Patrícia que os pensamentos e todos os atos decorrentes fazem parte de uma escolha pessoal e que a verdade precisa ser descoberta através da razão, pois só quem sabe o que é certo acaba fazendo a coisa certa.