Realidade e fantasia

Realidade e fantasia

Até que poderia ser mais uma obra de ficção, daquelas que foram batizadas de realismo mágico ou fantástico. Em milhares de páginas publicadas na imprensa mundial, a respeito da morte do escritor colombiano, Gabriel García Márquez, um fato chamou a atenção. Um episódio mal explicado narra uma via de fato ocorrido entre dois ícones da literatura americana, ambos, merecidamente, ganhadores do Prêmio Nobel em 1982 e em 2010. Sabe-se lá por qual razão, certa feita, Vargas Llosa teria dado um soco em Gabriel García Márquez. Que dissabor literário!  Ao lado de Júlio Cortázar e de Jorge Luís Borges, Gabriel García Márquez e Mário Vargas Llosa são os dois maiores ícones da literatura latino-americana.  Se o primeiro é autor do clássico “100 Anos de Solidão”, obra que vendeu 40 milhões de exemplares em 25 idiomas, o segundo narra com uma riqueza ímpar “A Guerra do Fim do Mundo” e o massacre da comunidade Canudos, fundada por Antonio Conselheiro. O desvelo de escritores obstinados serve para evidenciar que a história está repleta de graves equívocos. De acordo com a historiografia oficial, o “conselheiro maluco” atacaria a incipiente República para reinstalar a Monarquia.

Gabriel García Márquez e Vargas Llosa são escritores parecidos, mas com enormes diferenças. Na principal semelhança, exploraram as contradições da América Latina para fabricar romances e histórias memoráveis. Ambos tiveram o jornalismo como ponto de partida de onde extraíram os elementos para a construção de uma narrativa forte e, na maioria das vezes, bastante objetiva. García Márquez escreveu sobre o pressuroso ofício cuja dimensão literária pereniza os escritos: “porque o jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade. Quem não sofreu essa servidão que a se alimenta dos imprevistos da vida, não pode imaginá-la...” Em outra página, Vargas Llosa descreveu esse prestimoso ofício: “o ato de escrever não pode estar ligado a um simples exercício gratuito e nem a uma ginástica intelectual. Escrever é, definitivamente, uma ação que desencadeia efeitos históricos, que reverbera sobre as manifestações da vida, e, portanto, é uma atividade profunda, essencialmente social.”

A história do soco mal explicado tem mais de 40 anos e agora a morte de Gabriel García Márquez não é o melhor momento para elucidar o episódio. Há duas hipóteses entre as mais consideradas. Uma relata um mal entendido envolvendo a esposa de Vargas Llosa, mas outra, de cunho ideológico, propicia uma reflexão bem mais interessante sobre a literatura e a política ao mesmo tempo em que coloca os dois escritores em campos opostos. Essa é uma discussão bastante controversa ao fazer uma verdadeira inquisição sobre a função da arte e o papel da literatura. Enquanto Vargas Llosa se apresentou no mundo da política como um liberal de direita, tendo inclusive concorrido à presidência do Peru, em 1990, e perdido a eleição para o ditador direitista Alberto Fujimori, Gabriel García Márquez sempre pendeu à esquerda, foi amigo de Fidel Castro e um crítico das intervenções dos Estados Unidos no Vietnã e no Chile.

As posições à esquerda e à direita tornam-se secundárias diante da grandiosidade das duas obras que permitiram à América colonizada por espanhóis e portugueses a criação de uma identidade própria, marcada pelas contradições entre a riqueza e a pobreza extremas. Há nessa formação do povo do continente americano uma superstição e um espírito de resistência que são marcas muito próprias. São lendas, folclore, relatos verdadeiros de opressão de um povo que conviveu com pequenas alegrias e enormes tristezas. Na história recente, precisou superar o cabresto das ditaduras que governaram o Brasil, a Argentina, o Chile, o Paraguai e o Uruguai. Hoje, estes mesmos países são governados por políticos demagogos e populistas corruptos que foram satirizados nas obras de Gabriel García Márquez e Vargas Llosa com suas visões à esquerda e à direita. Ideologias diferentes produziram o mesmo efeito crítico. Talvez por isso, a morte de um grande escritor seja a menos condoída. O corpo vai, mas a obra permanece.

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