Reencontro com Santa Maria

Reencontro com Santa Maria

Há dois anos, a tragédia que matou 242 estudantes deixou uma marca inapagável no semblante da Cidade Universitária. Uma barraca colocada bem no centro, na principal avenida, com as fotos das vítimas, não permite que Santa Maria esqueça dos filhos que perdeu, no incêndio da Boate Kiss, no dia 27 de janeiro de 2013. A cidade, batizada com o nome da mais acolhedora de todas as mães, ainda clama por justiça. Sem vigilância nenhuma, ninguém se atreve a mexer na barraca forrada com as fotos de jovens cheios de vida. A algumas quadras ao lado, os escombros do inferno em chamas permanecem intactos como um monumento à impunidade que envergonha a cidade e o país. “Bombeiros, Ministério Público e políticos assassinos. Vocês sabiam e não fizeram nada”, diz um cartaz colocado no que restou do prédio da boate.  

Desde a fundação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), em 1960, a cidade vive em função dos estudantes, que povoam as ruas e ocupam quase todos os espaços. Quem passou pela UFSM nesses 55 anos não esquece dessa faceta hospitaleira e acolhedora da cidade. O Curso de Comunicação Social foi criado, em 1971, no auge da Ditadura Militar, mas isso sempre representou uma motivação a mais para quem estudava lá. Na sua essência, o jornalismo possui uma dependência vital da liberdade de expressão. A exemplo do que ocorreu nos grandes jornais do país, quando alguma matéria do restrito jornal do curso era censurada, a reportagem era substituída pela estrofe de uma poesia ou por uma receita de bolo. Quando a ditadura acabou, o espírito contestador já estava encrustado no DNA do curso, nas conversas pelos corredores, nas salas de aula, no restaurante universitário e nos bares da cidade. Passeatas, reuniões noturnas, protestos, debates sobre ideologia política, eventos culturais e discussões filosóficas faziam parte desse cotidiano do aprendizado.  Havia um clima diferente no ar, com sonhos coletivos que se misturam a projetos individuais. Sem perceber, quem deseja mudar o mundo acaba se transformando, mesmo que não consiga realizar o seu intento.

Um dos autores mais estudados no curso comunicação era o italiano Umberto Eco, filósofo, semiólogo, um tipo raro de ser pensante, hoje, praticamente, em vias de extinção na era das respostas automáticas e dos atos impulsivos. Eco escreveu livros de grande repercussão na análise do discurso da comunicação: “O Nome da Rosa”, “O Pêndulo de Foucalt” e o clássico, “Apocalípticos e Integrados”, uma obra visionária, lançada em 1965, sobre a cultura de massas na era tecnológica. Nas aulas de teoria da comunicação, aprendia-se que, segundo o escritor, os apocalípticos são aqueles que condenam os meios de comunicação de massa pela veiculação de uma cultura homogênea, que desconsidera diferenças culturais e padroniza o público. Outra crítica contundente adverte sobre o desestímulo coletivo a pensar, tornando as pessoas passivas e conformistas. Sob o ponto de vista dos integrados, os meios de comunicação de massa precisam ser absolvidos, pois são fontes de informação e contribuem para a formação intelectual do público. Enquanto os apocalípticos se mantêm distantes dessas inovações e são refratários a qualquer aproximação, os integrados prontamente adotam os novos meios, fazendo uma utilização intensa. Se o livro fosse lançado agora, Eco certamente incluiria as mídias sociais nesta análise. Não poderia haver teoria mais atual. A propósito dessa discussão, você está mais para apocalíptico ou para integrado?

Esse turbilhão de sensações presentes e de lembranças passadas, do período pós-ditadura militar, da abertura do movimento estudantil, das teorias da comunicação e da importância que as amizades têm na vida ressurgiram em Santa Maria no feriadão de 1º de maio. Por ironia do destino, o expressivo quórum do encontro dos ex-estudantes da Comunicação Social da UFSM da década de 80, mais os agregados, viajou pelo túnel do tempo, do virtual mundo do Facebook para a vida real. O complicado algoritmo da ferramenta deu uma busca geral na lista de contatos das velhas amizades. Quase milagroso, o “face” conseguiu resgatar muita gente que se conhece há tempos, mas que há três décadas havia sumido no horizonte. A página do encontro “bombou” com presenças reais e virtuais de gente distante, da Bahia, de São Paulo e até Buenos Aires. Sob a inspirada hashtag, “eu sei o que você fez no milênio passado”, a turma reapareceu com alguns cabelos brancos, a memória repleta de lembranças e as indeléveis marcas do tempo. Além de tirar muita foto com celular e encher os álbuns do Facebook, quem esteve por lá saiu com a certeza de que nem o tempo é capaz de remover as afinidades e os sentimentos que sustentam as boas e velhas amizades.

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