Replicante indesejado

Replicante indesejado

À medida que o tempo passa, parece que a pandemia vai fincando raízes, mudando hábitos, quebrando rotinas e impondo um novo jeito de viver. No começo, ficava a sensação de que era possível resistir bravamente até que tudo voltasse ao “normal”. Aos poucos, essa resiliência vai sendo quebrada. Para muita gente, a clausura veio acompanhada da solidão. Os dias passam lentamente, muito parecidos, sem a cara da novidade. O coronavírus dá a falsa impressão de que vai e volta, mas permanece no ar invisível, sorrateiro, sempre à espreita de um vacilo para contaminar mais alguém e engordar a sua macabra estatística.  

Os dilemas aparecem pelo caminho. Abrir ou fechar a economia, saúde versus economia, aulas presenciais ou virtuais? Quem está enclausurado está louco para romper o isolamento, mesmo sem ter a mínima certeza do que pode acontecer. Quem pode sair não se arrisca. O último fim de semana ”normal”, antes da decretação das medidas de isolamento, foi nos dias 14 e 15 de março. Esses cinco meses voaram ou passaram muito devagar? Ninguém imaginava que o sofrimento seria tão prolongado. Quando se sente pressionado, o ser humano se defende atacando, transforma desejos em argumentos, passa a compreender o mundo da forma mais conveniente. “Pensei que podia e que não haveria problema.” 

Quando se olha para o horizonte, para não ficar remoendo o passado, brotam mais incertezas.  Quando será possível realizar uma festa? Quando haverá uma partida de futebol com casa cheia? Em qual Carnaval todos poderão se abraçar livremente? Quando professores e alunos voltarão às aulas, preocupados apenas com os conteúdos das matérias? Até quando teremos que conviver com as lives? Cientistas e médicos da saúde têm essa resposta na ponta da língua: só quando houver uma vacina cientificamente comprovada. 

Enquanto essa cura não chega, o coronavírus segue impávido na contaminação desenfreada. Sem ser convidado, se infiltra no convívio social à procura de hóspedes para se multiplicar até a exaustão. Os estudos já comprovaram que o vírus replicante concentra o ataque nos pulmões, algo que o ser humano tem de mais simples e mais complexo. A criança que sai do útero da mãe chora ao nascer e aprende a respirar. No estágio terminal, o corona mata por asfixia. Também pode destruir o sistema nervoso, provocando a perda do olfato e o paladar. Ainda ataca os rins, o intestino e outras partes do corpo. Os médicos descrevem esse quadro como uma tempestade inflamatória que sabota o corpo inteiro. 

A contaminação pode deixar graves sequelas. Pessoas contaminadas com gravidade, que ficaram longos períodos entubadas e sobreviveram, relatam dificuldades de locomoção, de alimentação e apresentam fragilidade emocional. Muita gente chora só de lembrar que ficou entre a vida e a morte. O perigo iminente faz ressurgir o desejo de viver. São marcas que não vão se apagar. Quem perdeu parentes próximos, não esquecerá dessa pandemia tão cedo.  Quando foi lançado em 1982, Blade Runner era um filme de ficção. O futuro viria em 2019, uma época de consumismo exacerbado. A civilização estava à beira de um colapso moral e material. O pequeno replicante da atualidade deixou a espécie humana bem aflita e tal qual um filme de suspense questiona o sentido da vida. O sofrimento e a dor são parteiros da transformação. Tem espaço para a mudança. Até seria bom se o mundo não voltasse a ser exatamente como era antes.

Compartilhar: