A saga dos ídolos

A saga dos ídolos

A contagem do tempo sempre será algo relativo. Um quarto de século pode parecer pouco se considerarmos o tempo necessário para as mudanças estruturais de um país, mas, em dias em que a instantaneidade impera, 25 anos soam como uma eternidade. Portanto, faz pouco ou muito tempo que o último grande ídolo brasileiro morreu. Recentemente, no dia 1º de maio, a imprensa brasileira e o país relembraram a morte do piloto Ayrton Senna e as principais passagens da sua vida. Além das vitórias, dos três campeonatos mundiais, da admiração que permanece no mundo da Fórmula 1, o piloto conseguiu desviar durante a carreira das polêmicas profissionais e pessoais.

Ficaram registradas algumas rusgas com o compatriota contemporâneo, Nelson Piquet, e a rivalidade com alguns pilotos da época, especialmente o francês Alain Prost. No seu momento mais antiético, por assim dizer, Senna jogou o carro em cima do rival. Os dois foram para fora da pista e Senna ficou com o título de campeão do mundo. Na época, essa atitude foi considerada uma “vingança justa”, pois no ano anterior Prost fez o mesmo e ficou com o campeonato mundial. Num momento de puro altruísmo, deixou um companheiro de equipe passar para ganhar uma corrida. Senna só não conseguiu desviar do acidente fatal em que morreu em maio de 1994. Deixou como legado um instituto com reconhecida atuação no terceiro setor e nunca teve problemas com o fisco.
     
Depois que Senna morreu, o Brasil ficou órfão de ídolos. Os seus sucessores na Fórmula 1 nunca alcançaram o mesmo status na preferência do público. O tenista Gustavo Kuerten, contemporâneo de Senna, ocupou um espaço importante no imaginário popular durante algum tempo, mas perdeu força com a aposentadoria precoce. Apesar da legião de craques que o Brasil possuiu no futebol, nenhum deles conseguiu reproduzir fora das quatro linhas a mesma performance do campo de jogo. O tempo passou e o cargo de ídolo número um sobrou, por falta de concorrência,  para  o Neymar, hoje uma estrela solitária nesse seleto panteão. Diga-se, de passagem, que o jogador nunca pediu ou demonstrou apreço pelo papel.

Em 2010, quando ainda estava no Santos, ele xingou o técnico Dorival Junior ao ser preterido numa cobrança de pênalti. O técnico adversário, Renê Simões, pegou pesado e disse após esse jogo que “estamos fabricando um monstro”. A saída do craque promissor para o Barcelona é uma polêmica que ainda não terminou. O Santos entrou na Justiça afirmando que foi passado para trás na negociação. O valor que o clube recebeu estaria subfaturado.  A imprensa esportiva brasileira costuma dizer que Neymar é um garoto mimado que cresceu numa bolha, superprotegido por um estafe que vive passando a mão na sua cabeça. Por isso, não tolera ser contrariado.

Na Copa do Mundo de 2018, simulou diversas quedas e virou um meme mundial do cai, cai. Recentemente, deu um soco em torcedor que o criticou na França e no último acontecimento foi envolvido em um escândalo sexual com trechos picantes transmitidos via WhatsApp para o mundo inteiro. Sem entrar no mérito da sua vida pessoal, além da acusação de crime na internet, está sendo investigado na França onde o imbróglio aconteceu. De quebra, prejudicou a preparação da Seleção Brasileira para a Copa América, pois vitórias no futebol exigem foco e concentração. Constrangimento geral.   

Se não bastasse a maré baixa da economia e a corrupção da política, o Brasil parece que nunca esteve tão carente de ídolos que sirvam de referência para apontar caminhos, principalmente às novas gerações. Para variar, as polêmicas sobre os ídolos estão presentes na modernidade e dividem a esquerda e a direita. Dia desses, o surpreendente vice-presidente, Hamilton Mourão, em uma entrevista, combateu o refrão do finado Cazuza ao declarar em alto e bom som que “os seus heróis não morreram de overdose.” Mourão elogiou o coronel Brilhante Ustra, acusado de tortura na época da Ditadura Militar. Em Ideologia, Cazuza cantou que “meus heróis morreram de overdose, e meus inimigos estão no poder”.

Ídolos são referências, personalidades que geram identificação e empatia e talvez por isso ensejem tanta polêmica. São representantes de uma cultura, de um povo ou de uma filosofia de vida. Também são a razão de embates entre os pensadores. Na história antiga, representavam a divindade. Pela visão herética, mais fanática, significavam a veneração por serem portadores de atributos divinos. O pensador inglês, Francis Bacon, com seus escritos no final do Século XVII, elaborou a teoria dos ídolos para combater essa visão distorcida. Guardadas as devidas diferenças temporais, Bacon afirmava que os ídolos induzem ao erro e são responsáveis por falsas noções que congestionam a mente. Será que realmente a humanidade precisa dos ídolos para viver melhor ou esses seres portadores de algum atributo especial são apenas uma geniosa invenção do imaginário coletivo? Se Bacon estivesse vivo para analisar o caso do Neymar, certamente responderia que não. 

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