
A saudade da Elis Regina
Corria o ano de 1982. A ditadura militar estava em seus estertores e os movimentos sociais viviam às testilhas com os generais. Ainda era arriscado colocar o pescoço em manifestações políticas. Eu estava começando neste ofício como calouro do curso de jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria.
Um mês antes do ingresso na UFSM, mais precisamente no dia 19 de janeiro de 1982, portanto há precisos 30 anos, uma voz vibrante silenciava. Elis Regina, na flor dos 36 anos, considerada pelos críticos como uma das maiores intérpretes da Música Popular Brasileira (MPB), morria por causa de uma fatal mistura de cocaína com bebida alcoólica.
Por contraditório que pareça, os trotes universitários daquela época eram bem mais civilizados do que os de hoje. O coordenador do curso havia organizado uma semana de debates para recepcionar os bichos, da qual todos participavam. Por coincidência, o editor da Veja estava lá. Na inesperada morte da cantora, a revista tinha estampada na capa uma performática foto de Elis Regina com o título: “A tragédia da Cocaína”. Lembro da imagem que ilustra este editorial como se fosse hoje. Ouvia as canções de Elis Regina no rádio e só anos mais tarde entendi o real significado do “Bêbado e a Equilibrista”, música de João Bosco e Aldir Blanc, escrita em 1979. Eram as dores do Brasil, as mortes, os exílios e os desaparecimentos cantados em uma música que virou o hino da anistia.
“Meu Brasil. Que sonha com a volta do irmão do Henfil. Com tanta gente que partiu num rabo de foguete. Chora a nossa pátria mãe gentil, choram Marias e Clarices no solo do Brasil. Mas sei que uma dor assim pungente. Não há de ser inutilmente, a esperança, dança na corda bamba de sombrinha”. Maria era mãe de Betinho (irmão de Henfil) e Clarice, mulher do jornalista assassinado na ditadura Vladimir Herzog. As Marias e as Clarices, no plural, faziam referência às mães, às irmãs ou às mulheres de pessoas que morreram, lutando por um ideal, um sonho, de ver o Brasil democrático e livre.
Meus colegas veteranos protestaram com veemente indignação, afirmando que a chamada de capa da revista era sensacionalista e denegria a imagem da maior intérprete da MPB da época. Mesmo diante da hostilidade da plateia e da desvantagem numérica, o editor da Veja não se mixou. Defendeu a capa dizendo que se tratava da mais pura realidade, por mais cruel que ela fosse. Eu, como estava chegando no pedaço, assisti aquela peleia de gente grande quieto, lá no fundão do auditório.
Lembrei da Elis Regina e dessa história na noite do Reveillon que passou. A televisão estava ligada na Globo, enquanto transcorria a confraternização familiar. Uma duvidosa seleção de cantores, com muitas músicas de mau gosto, desfilava na tela. Lá pelas tantas, apareceu um tal de Michel Teló com o pegajoso refrão que as crianças cantavam e coreografavam com grande entusiasmo. “Delícia, delicia, assim você me mata, ai, se eu te pego, ai, ai, se eu te pego”. Não sei o porquê, fiz as contas. Lembrei da morte da Elis Regina, dos 30 anos que tinham passado. Embora não fosse um ardoroso fã seu, de repente, do nada, bateu uma enorme saudade das canções da Elis Regina.