
Sem tempo perdido
Num mundo onde os estupros, as agressões, as homofobias e os preconceitos ficam cada vez mais frequentes, rotineiros e exacerbados, o rock resgata o antigo apelo à paz e ecoa como um chamado à razão da convivência harmônica. Esse clima amistoso, típico dos festivais, faz com que o João Rock reúna 50 mil pessoas sem incidentes graves, algo cada vez mais raro hoje em dia. No meio daquele congestionado vaivém, quem esbarra involuntariamente em alguém logo se apressa em pedir desculpas. Em 15 anos, o João Rock se consolidou como o segundo maior festival de Rock do país, atrás apenas do Rock in Rio que não acontece todos os anos. As principais bandas nacionais são unânimes em reconhecer a dimensão que o Festival alcançou, sem se render a outros gêneros musicais para aumentar a bilheteria. O evento de Ribeirão Preto manteve a essência com prioridade absoluta para o som das guitarras, sem apelar para as multidões que andam atrás dos trios elétricos.
A qualidade e o reconhecimento são atestados pelo público. A maior parte dos roqueiros vem de fora de Ribeirão Preto. Há dois meses do evento, os ingressos se esgotaram mesmo que não fossem baratos. A inteira para o camarote começou a ser vendida a R$ 400,00 e no final chegou a R$ 800,00. Com tanto interesse, o João Rock ganhou ares de grande partida de futebol com uma parte considerável dos ingressos parando nas mãos dos indissociáveis cambistas.
Pena que tanto tempo depois, o poder público não tenha acompanhado essa evolução. Por falta de opção, o Festival precisa ser realizado no antigo Parque Permanente de Exposições, que não possui uma infraestrutura adequada para a realização de um evento desse porte. Isso faz com que os organizadores necessitem remontar a infraestrutura dos eventos a cada edição, o que aumenta os custos. A vida do João Rock, da Feira do Livro, do Festival Tanabata e de tantos outros grandes eventos seria bem mais fácil se Ribeirão Preto tivesse um local adequado, algo que a Agrishow, em 23 anos, conseguiu. Mas quem não tem dinheiro para tapar buraco, algum dia terá recursos para construir um grande centro de eventos?
Questões de infraestrutura à parte, a 15ª edição do Festival foi para lá de democrática, do rock mais antigo dos anos 90 ao som contemporâneo dos novos grupos. Com pontualidade britânica, foram 18 bandas se apresentando em três palcos em 10 horas de show entre a tarde de sábado e a madrugada de domingo. Planet Hemp, Nação Zumbi, Paralamas do Sucesso, Nando Reis, Titãs, Cidade Negra, CPM 22, Natiruts representam as ecléticas vertentes da música nacional. O velho clichê diz que gosto não se discute, mas o forte concorrente ao momento de maior emoção foi a apresentação da banda Legião Urbana. Na versão 30 anos, os remanescentes da formação original, o baterista Marcelo Bonfá e o guitarrista Dado Villa-Lobos, incorporaram o vocalista convidado, André Frateschi, que assumiu o desafio de substituir numa turnê Renato Russo. Se estivesse vivo, o ex-líder da Legião hoje seria um cinquentão (56 anos). Mesmo que a palavra “clássico” normalmente remeta a um tempo bem maior, a Legião Urbana já merece essa denominação por ser referência, mesmo para o público que não pode assistir à banda com a formação original. A apresentação no João Rock comprovou isso com o público cantando as músicas. Renato Russo morreu há 20 anos, mas esse não foi um “tempo perdido.” Pelo contrário, parece cada vez mais que essa época marcante e revolucionária do rock não fica distante à medida que o tempo passa.
Uma simples interpretação nostálgica faz com que o público perceba, cantando, que não há nada mais precioso do que ter todo o tempo do mundo à disposição. Só mesmo o som do rock para alertar que ainda há uma legião de pessoas caminhando pela contramão, desperdiçando o próprio tempo, simplesmente por permanecer afastado, distante de quem deveria estar próximo. Com seu estilo amargo, genialidade selvagem e espírito inquieto, Renato Russo ressuscitou no palco do João Rock para lembrar que cada um tem o seu tempo, mas que não há tempo a perder. No último verso, ensinou que o que já passou não é um tempo perdido, pois apesar dos anos, o rock ainda consegue rejuvenescer os que são tão jovens e até mesmo os mais antigos.
Foto: Pâmela Martins