A síntese do  artista brasileiro

A síntese do artista brasileiro

Chico Buarque é um talento raro da Música Popular Brasileira (MPB), daqueles que só florescem de tempos em tempos. Este ano, no dia do aniversário de Ribeirão Preto, 19 de junho, o artista fará 72 nos. O maestro Tom Jobim, que tem autoridade para falar sobre o assunto, colocou o músico nascido no Rio de Janeiro num seleto time do qual fazem parte Ary Barroso, Noel Rosa, Dorival Caymmi e João Gilberto. Essa seleção representa o que há de mais genuíno na MPB. Segundo Tom Jobim, dificilmente, uma única personalidade consegue reunir tantos talentos musicais. Chico Buarque tem nas veias as vertentes do sambista, do ritmista, do instrumentista, do letrista e do musicista. 

No Brasil, só os mortos costumam ter algum valor. Por isso, é muito bem-vinda a onda de documentários que apareceu recentemente para contar a vida e a obra de artistas como Tim Maia, Caetano Veloso e Raul Seixas. O documentário sobre Chico Buarque, que começou a ser exibido em Ribeirão Preto no Cine Cauim, com alta qualidade de som digital, ameniza um pouco essa distorção. Assistir a um filme desses em um cinema antigo, instalado em um centro que literalmente morre à noite, tem tudo a ver com o documentário que trata das letras, das criações geniais vetadas pela censura, dos marginalizados da sociedade, das incongruências do amor e da história política recente do Brasil. 

O refrão de uma consagrada música de Chico Buarque diz que “o tempo passou na janela, só Carolina não viu”. De fato, a todo o instante, o tempo abre e fecha suas fendas, mas o artista continua com o seu público, representado pela expressiva plateia que estende o olhar além dos filmes do circuito comercial para comparecer ao cinemão no domingo à noite. Até o solteiro Chico Buarque, que depois de 30 anos de casamento, separou-se da atriz Marieta Severo em 1999, ironiza essa passagem do tempo. A fama estourou em 1966, enquanto a banda passava pelos festivais. Hoje, Chico seguidamente recebe abordagens de belas e jovens mulheres pedindo para tirar uma selfie. Em seguida vem o comentário temporal. “Mostrarei para a minha avó que adora suas músicas”. Paratodos, de 1993, sintetiza sua brasilidade. O último verso da letra inclusive dá nome ao documentário. “Vou na estrada, há muitos anos, sou um artista brasileiro”. 

No último episódio em que foi notícia, Chico Buarque envolveu-se em um bate-boca na rua pelo apoio político que deu ao PT nas últimas eleições e à presidente Dilma Rousseff. Esse fato recente não está no documentário que traz muitos comentários sobre a relação entre a música e a política. Chico Buarque deve ser o artista brasileiro mais perseguido pela censura, mas entende que música e política são temas distintos. Quando sentiu raiva e desejo de vingança, até escreveu canções contra a ditadura militar, mas hoje não tem interesse numa militância mais ativa. Seu olhar está focado na literatura. 

O documentário tem algo curioso. Lança uma luz para os interessados em descobrir as razões da genialidade dos artistas. O próprio Chico conta que para se aproximar de seu pai, o historiador e sociólogo, Sérgio Buarque de Holanda, começou a ler muito cedo. Na adolescência já lia os clássicos em francês, ainda aprendeu inglês, italiano, espanhol. Poliglota, devorou os livros da literatura universal. Hoje, diz que conhece mais a literatura do que a música. Deve ser essa consistência intelectual que capacita o artista para fazer letras geniais. Nos idos de 1984, a letra de “Vai Passar” profetizava: “dormia, a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída, em tenebrosas transações”. Quem sabe, se ler de novo esse profético verso, o grande Chico Buarque não acaba revendo o seu apoio ao atual governo. 

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