
A sociedade reage
Assim como reagiu aos desmandos da política com passeatas, panelaços e mobilizações, a sociedade brasileira está aprendendo a revidar outras agressões graves. Recentemente, o caso que mais mobilizou a opinião pública nacional e internacional foi o estupro coletivo no Rio de Janeiro. Se não bastasse a barbárie do crime — mais de 30 homens estuprando uma adolescente — o delegado que comandava o inquérito dava a entender que sua investigação acabaria incriminando a vítima. As manifestações que ocorreram no país inteiro pressionaram as autoridades para que a investigação mudasse de rumo.
A responsabilidade pela condução do caso mudou de gênero, o que fez toda a diferença. O delegado que conduzia o caso foi afastado e, na primeira entrevista que concedeu, a delegada Cristiana Bento, que assumiu a investigação, não precisou de muito tempo para concluir de forma enfática que houve um estupro coletivo. “Tem um vídeo mostrando um rapaz manipulando a menina. Estou convicta de que houve um estupro”, afirmou a delegada, acrescentando que cabe ao inquérito policial apurar quem são os envolvidos e qual é a participação de cada um. A pressão recolocou os fatos nos seus devidos lugares.
No mesmo Rio de Janeiro, onde sabe-se lá como será realizada uma Olimpíada em agosto, um gerente de supermercado da Zona Sul não deixou barato e denunciou a agressora que acabou sendo presa pelo crime de injúria racial. A consumidora Maria Francisca Alves de Souza, de 58 anos, teve um daqueles esquecimentos que acontece com qualquer um. Foi para a fila do caixa sem levar um produto. Provavelmente, dona Maria Francisca gostaria de retroceder a um tempo antigo em que bastava dar uma ordem para alguém corrigir a sua própria falha. O gerente Paulo Roberto Gonçalves Navaro tentou explicar que os tempos mudaram e que funcionários não podem se responsabilizar pelas compras dos consumidores. Testemunhas relataram que a compradora se exaltou e mandou o gerente para a senzala e o quilombo. O funcionário não se intimidou e chamou a polícia. A atitude racista custou caro à agressora. Além da execração pública, Maria Francisca passou um final de semana presa e agora responderá a um inquérito criminal. Vai gastar com advogado e tem grande chance de ser condenada.
Numa prova de que está impregnado na sociedade, os atos racistas não agridem somente os cidadãos comuns, mas também atingem as celebridades. Depois de ter sido alvo de comentários racistas na internet, a funkeira Ludmilla não aceitou o pedido de desculpas do agressor e prometeu levar o caso até o fim. A cantora registrou o caso na delegacia vai processar o internauta para que ele não fique impune.
Outro episódio racista ganhou projeção com a repercussão nas redes sociais. A escolhida como Miss São Paulo deste ano foi uma jovem negra, Sabrina Paiva, que representou Caconde. A segunda colocada foi a candidata de Ribeirão Preto, Marina Lemos. Embora nada nessa vida seja mais subjetivo que a beleza, logo que venceu o concurso a miss São Paulo começou a ser atacada nas redes sociais por internautas preconceituosos. Um deles defendeu nas redes sociais “que deveria haver dois concursos para que os jurados não tivessem a possibilidade de escolher uma negra em detrimento das candidatas brancas.”
Nesse episódio lamentável, correta foi a percepção da miss Ribeirão Preto, que percebeu que muitas pessoas faziam elogios a sua beleza para depreciar a vencedora. Numa bela atitude que deixou a vaidade de lado, Marina Lemos escreveu em sua página no facebook: “Tenho lido diversos comentários que na ânsia de me elogiarem, acabam por expressar um racismo velado. Quero dizer que não compactuo com isso e gostaria de pedir para aqueles que gostam de mim ou do meu trabalho que não tenham mais essa atitude desagradável... Cada uma tem a sua beleza, o seu talento e o seu momento”, comentou a miss Ribeirão Preto. Embora sejam episódios desagradáveis que devem ser divulgados e punidos com rigor, esses acontecimentos trazem à tona uma discussão importante e evidenciam que o Brasil está muito longe de uma democracia racial. A segunda observação revela que a passividade está cedendo lugar à reação e que justamente por isso o jogo está se invertendo. A impunidade está começando a perder pontos para a punição. A transparência, que até pouco ninguém dava bola, já está derrubando ministros que não são transparentes. Daqui a algum tempo, colheremos os frutos dessas reações que provocam mudanças.
Foto: AgNews