A subversão do coringa

A subversão do coringa

Um filme cheio de metáforas. A enigmática Gotham City reproduzida numa Nova Iorque decadente, depauperada, com uma elite aristocrática que pouco se importa com a marginalização que ocorre no submundo da periferia, onde a pobreza, a intolerância e a violência se disseminam. A “Big Apple” da produção cinematográfica representa milhares de grandes cidades espalhadas pelo mundo onde a desigualdade social vira regra de convivência.  Para realçar esse abismo que separa os bem ricos dos mais pobres, uma greve de lixeiros escancara a podridão de um mundo aparentemente glamouroso. A realidade das ruas tem uma cor perversa e apresenta cenas chocantes de crueldade. Esse mundo underground vira o habitat dos excluídos, daqueles que lutam todos os dias para sobreviver sem muitas perspectivas no horizonte. Nesse mundo hostil, corroído pela pobreza e pela falta de oportunidades, vive o personagem magistralmente interpretado por Joaquim Phonenix, já apontado pela crítica como forte candidato ao Oscar de melhor ator do ano que vem.     

No meio desse holocausto urbano, Phonenix coloca em cena um personagem que vai subverter a ordem social de baixo para cima, não pelas vias justas de alguma revolução de princípios, mas com uma resposta violenta e maligna, na base do riso por riso, lágrima por lágrima. Impróprio para crianças, o coringa é um palhaço sem graça, que ri sem parar por causa de uma estranha enfermidade que provoca risadas incontroláveis. Traumatizado desde a infância pela doença, o histriônico personagem perambula por esse submundo vendo, uma a uma, todas as portas se fecharem. Sofre toda a sorte de calúnias, bullying, falsidades e violências até que sua revolta explode de forma assustadora. Enquanto é pisoteado sem piedade, o coringa forja sua vingança.  

Até essa versão do coringa, o cinema produziu uma extensíssima lista de filmes de super-heróis com receita padrão: a eterna luta do bem contra o mal com o espectador sabendo de antemão quem vence no final. Pois bem, pela primeira vez na história mais conhecida do cinema, o diretor Todd Phillips rompeu essa lógica maniqueísta ao apontar a câmera para o submundo dos super-heróis. Mostrou que há muita hipocrisia até mesmo na benemerência da família Wayne que esconde o Batman no porão. Phillips mostra que o mal e a violência não são gratuitos, obras do acaso que existem por razões desconhecidas. A maldade tem raízes, causas sociais geradas pela desigualdade, por mais difícil que seja sua análise e a busca por explicações. Com detalhes, a narrativa do filme se constitui num passo a passo do fracasso do palhaço que só queria uma chance de ser artista, mas foi defenestrado de maneira sarcástica pelo establishment. Por esse prisma, seria o coringa um palhaço da sociedade opressora ou uma caricatura de si mesmo?      

O coringa é talentoso, mas também tem lapsos de memória. Desperta ódio e piedade, revela para o espectador os descaminhos da violência ao mesmo tempo em que personifica o que pode haver de pior no ser humano. A violência do coringa não se justifica, mas cumpre um papel revelador ao dimensionar a saga dos excluídos. Comédia, drama ou terror? Na sua maior metáfora, o coringa traz à tona o conflito latente que hoje permeia as relações sociais das grandes cidades com uma enorme população excluída que vive à margem de qualquer programa social ou de inclusão. 

O teatral coringa profetiza o caos, provoca a subversão da ordem vigente que culmina numa grande anarquia. Em busca do reconhecimento a qualquer preço, o palhaço risonho quer pôr fogo no circo, mas serve como um aviso sobre a alta pressão e o descontentamento que tomam conta do andar de baixo.  No seu momento de glória, o anti-herói aponta o dedo para a desagregação social que ronda o mundo contemporâneo.  Vira o ídolo dos desvalidos mascarados. Na ficção, desta vez não tem o Batman para salvar a cidade. O coringa vira o jogo e vence. A explosão urbana personifica a vitória do caos. Na vida real, o mundo assiste meio paralisado à ascensão de vários “coringas” que com um discurso raivoso e cheio de ódio acirram as contradições. Provocam um perigoso tudo ou nada, o nós contra eles, com consequências imprevisíveis. Os falsos heróis estão dominando a cena e elevando a temperatura do mundo. 

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