Talento para se reinventar

Talento para se reinventar

O mundo está cheio de novidades, mas as artes possuem certa perenidade que, às vezes, surpreende até mesmo os críticos mais céticos. Os maiores exemplos da atualidade são as intermináveis novelas. Depois de mais de meio século no ar, havia quem tivesse decretado o fim do gênero diante do surgimento das séries, das opções de TV por assinatura ou mesmo diante dos vídeos do YouTube. Principal produtora do gênero no país, a Rede Globo amargou significativas quedas de audiência nos folhetins, mas conseguiu fazer com que a audiência reagisse. Fixou um diretor geral das novelas, Silvio de Abreu, e abriu espaço para uma nova geração de escritores que está reinventando essa dramaturgia. As elipses temporais (passagens de tempo) se tornaram mais frequentes, a trilha sonora tem forte apelo emotivo e as reviravoltas levam a trama em direção ao gosto do público. São fórmulas bem antigas, mas que funcionam, conforme atestam os números do Ibope. Somando tudo, das 18h até a meia noite, mais de 60 milhões de brasileiros arrumam tempo para curtir uma novelinha. Ainda que a abordagem seja superficial, a variedade na prateleira vai da história de época do “Novo Mundo”, passando pela violência no Rio de Janeiro e as questões de gênero da “Força do Querer” até o período da censura de “Os Dias Eram Assim”.

Apesar da crise e da falta de patrocínios, o cinema também tem conseguido se superar. Em Ribeirão Preto, há pouco tempo foi exibido “O filme da Minha Vida”, dirigido por Selton Mello, que resgata as brincadeiras da infância, a descoberta da sexualidade, os filmes em preto e branco e as viagens de trem. “Como nossos pais”, de Laís Bodanzky, está inserido nesse contexto da superação, mostrando a necessidade de lidar com os conflitos pessoais, as dificuldades no casamento e as aspirações profissionais. Já está sendo exibido em tempo real, em relação às notícias da atualidade, “Polícia Federal – A Lei é Para Todos”, filme sobre a Lava Jato, a investigação que virou longa metragem. Iniciada há três anos e meio, a operação já está na 45ª edição e a cada novo capítulo de prisões parece que está mais longe do final.

“João, o Maestro”, do diretor Mauro Lima, que também dirigiu as ótimas produções “Meu Nome Não É Johnny” e “Tim Maia”, pode ser resumido como uma ode a superação. A frase que aparece no começo do filme, “a dor é o único caminho que conduz à perfeição”, do escritor Oscar Wilde, sintetiza as contradições das vitórias e das derrotas; o preço do sacrifício e o retorno das conquistas. Desde criança, sugestionado pelo pai, João já era um prodígio, um menino especial, mas esse filme não envereda pela apologia ao gênio superdotado. Tanto no cinema, quanto na vida real, o maestro João Carlos Martins traduz a obsessão compulsiva pela busca da perfeição no gênero da música clássica. Seus movimentos, mesmo que limitados pelos acidentes que sofreu e pelas doenças que contraiu, eram barreiras a superar.  Para vencer na arte que escolheu teve que pagar com a perda progressiva da saúde.

A vida do maestro brasileiro, reproduzida na tela, também demonstra a infinita capacidade do cérebro humano, capaz de guardar na memória as notas das peças dos maiores compositores do mundo, especialmente de Sebastian Bach, o compositor alemão que tinha em João Carlos Martins um dos seus maiores intérpretes, mesmo que as obras tivessem sido escritas há 250 anos. Na cena que melhor sugere a compreensão  da arte, o mestre pede ao prodígio que dê forma à sensibilidade. “Toque as pausas. Molde o silêncio. É o que faz você de diferente do outro. Cause sensação”, explica o professor ao jovem pianista.

No primeiro acidente, perdeu os movimentos da mão esquerda, no segundo, da direita. Sem poder prosseguir como pianista, João Carlos Martins se reinventou como maestro. Em tempos tão ásperos, essa é a grande lição a ser apreendida. A obstinação por algum objetivo fecha o cerco dos afazeres. Na infância e na adolescência, Martins passou um terço da vida tocando. A repetição perfeccionista exaure e, sem exagero, até faz sangrar. O indivíduo obstinado por algo grandioso se isola e isso toma conta das suas entranhas. Num mundo tão imediatista e superficial, uma conduta dessas até soa meio esquisito, pois, na grande maioria das vezes, nas circunstâncias atuais do cotidiano, não há equivalência entre a ambição dos objetivos e a profundidade da dedicação. Deseja-se ganhar muito com pouco esforço. Ao contrário, João nunca desistiu e até hoje segue se reinventando. O pianista impossibilitado de tocar pela paralisia das mãos virou o maestro com mais de 1.500 apresentações pelo mundo. No concerto da sua vida, a limitação não teve nenhuma chance de ganhar da determinação. 

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