A tela das analogias

A tela das analogias

Ao chegar aos 90 anos, poucos eventos mundiais repercutem tanto na opinião pública, por mais que os valores, as ideologias e os critérios adotados pela indústria cinematográfica tenham pouco a ver com os países onde a premiação é exibida. O mundo acompanha a escolha do papa, a final da Copa do Mundo, a abertura da Olimpíada, o casamento de algum descendente da nobreza britânica e fica muito curioso para saber quem ganhou o Oscar na longa cerimônia de três horas de duração.

Embora a Academia Americana, que reúne cerca de oito mil membros, não seja nenhuma entidade suprema consagrada por critérios de justiça e de reconhecimento, a pequena estatueta de 35 cm de altura e peso de 4 kg possui uma poderosa simbologia, levada muito em conta nos dias atuais: a do sucesso ou do fracasso. Apesar das injustiças, das críticas, do glamour exagerado do tapete vermelho, o Oscar virou uma espécie de espelho, um espaço onde humanidade se enxerga para examinar tendências, notar os estilos de comportamento, reafirmar os padrões de beleza, analisar as relações de poder e até de convivência entre os povos. Os filmes que integram a seleta lista formam uma espécie de mosaico do comportamento mundial com temáticas diversificadas que abrangem o racismo, a homofobia, as relações amorosas, as guerras, a ficção, a fantasia e a dominação política.

No painel deste ano, o favorito “Roma”, gravado em preto e branco no México, produzido pela Netflix, foi o que menos encantou ao contar uma história muito intimista de uma babá. Os que mais repercutiram surfaram na onda da música pop, casos do romântico “Nasce uma Estrela”, protagonizado por Lady Gaga e Bradley Cooper, e “Bohemian Rapsody” que conta a história de Freddie Mercury e da banda Queen. Como não tem Oscar sem polêmica, enquanto o público se comoveu com a história de vida do líder da banda, a crítica não deixou passar as incongruências do roteiro com a história real. O que seria do cinema se as divagações não fossem permitidas como uma válvula para escapulir da dura realidade? A surpreendente atuação de Rami Malek, candidato ao Oscar de melhor ator, mostrou a face mais humana de Freddie Mercury e revelou para o mundo a genialidade de um artista solitário, agora eternizado pelo cinema. Quem assistiu a “Infiltrado na Klan” fica estarrecido ao ver até aonde o racismo pode se impregnar numa sociedade. Embora não haja no Brasil uma entidade similar à temida Ku Klux Klan,  as manifestações racistas se multiplicaram nos últimos anos.

Glen Close, 71 anos, a estrela de “A Esposa”, se enquadra naquela famosa categoria das grandes estrelas que nunca ganharam um Oscar. A forma como essa constatação se apresenta na mídia soa como demérito ou um atestado de incompetência. Propaga-se a ideia de que quem não brilha, flerta com o fracasso. No filme, Glen Close faz o papel de uma esposa que em 40 anos de casamento praticou o amor incondicional ao marido, sacrificando seus sonhos, virtudes e ambições. A dedicação foi tanta que o marido ganhou o prêmio Nobel com a literatura dela. 

Entre todos esses filmes, um traz uma abordagem especial sobre as relações de poder, a ética ou a falta de escrúpulos, a dominação política, as guerras e as invasões. 

“O Vice”, dirigido por Adam McKay, pega carona no vácuo da licença poética para passar pelas brechas deixadas pela história real, apresentando ao espectador as versões ocultas de episódios bem conhecidos. O filme mostra os bastidores da relação de dois políticos influentes da história recente da política americana, George W. Bush e Dick Cheney, e provoca analogias bem atuais. Embora seja apenas o vice, Cheney não se contenta com o protocolo decorativo e advoga para si poderes ilimitados para proteger a sociedade americana após os atentados de 11 de setembro de 2001. Seu personagem passa do mero exercício do cargo ao controle e ao poder absoluto, capaz de emparedar a imprensa em nome da segurança nacional. O caso mais emblemático foi a Invasão do Iraque em 2003. Na divisão de poder, o vice se encarrega da parte mais sinistra do governo, pouco importa se o Iraque tem ou não armas químicas. Como Saddan Hussein era um ditador sanguinário, a invasão está justificada.

Com a ajuda de assessores, Cheney cria uma teoria centralizadora que passa por cima de leis, de princípios e até dos sentimentos familiares em nome da ideologia. O bem-estar público se torna algo imperioso que precisa se sobrepor a qualquer reação ou vontade contrária. O dilema cinematográfico encontra ampla correspondência na realidade atual. A vertente autoritária que se impôs sabe tirar proveito do caos. Faz um discurso messiânico e se apresenta como a única possibilidade viável para salvar a sociedade da derrocada e de inimigos imaginários. O poder passa a ser operado em seu controle máximo para garantir a ordem, mesmo que para isso seja preciso atropelar as subjetividades, as individualidades e os limites estabelecidos pela lei e pela ética. Na sombria lógica do vice, os fins sempre justificam os meios. No universo da política, tem muita gente que pensa assim. 

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