
Tragédias Cotidianas
As catástrofes e as tragédias no Brasil seguem uma lógica perversa de aceitação passiva, resultado de uma mistura da permissividade do poder público, do desrespeito às normas de segurança, da corrupção e da ganância pelo lucro desmedido. Essa extensa lista de acontecimentos trágicos provoca sofrimento, dor e morte. Há muito tempo, o país assiste a uma sucessão de incêndios, enchentes, desmoronamentos de morros e de encostas, explosões de refinarias, quedas de prédios, pontes e viadutos e, recentemente, as terríveis avalanches de lama.
Infelizmente, as tragédias fazem parte da vida, mas, nos últimos tempos, elas se tornaram mais frequentes e mais destrutivas. Embora esses acontecimentos sejam decorrentes de diversas razões, há um pano de fundo, uma causa comum que liga o rompimento das barragens aos incêndios e às quedas de prédios públicos.
Puxando pela memória, uma das maiores tragédias brasileiras completou 45 anos recentemente. No dia 1º de fevereiro de 1974, o Joelma, o imponente edifício de 25 andares do centro de São Paulo pegou fogo depois de um curto-circuito no 12º andar. Cento e oitenta e sete pessoas morreram e mais de 300 ficaram feridas no incêndio que se tornaria um dos maiores do mundo em vítimas fatais, atrás apenas das Torres Gêmeas do World Trade Center. Essa tragédia ficou marcada pelas imagens das pessoas se jogando do prédio para não morrerem queimadas.
Dois anos antes, no mesmo centro de São Paulo, ocorreu o incêndio do edifício Andraus com 16 mortos e 330 feridos. Na época, essas duas catástrofes foram apontadas como marcos de uma necessária mudança na legislação de prevenção a incêndios no Brasil e o alerta para a implantação de normas mais rigorosas. Não é preciso ser um historiador para saber que os incêndios continuaram ocorrendo no país devido à ausência de legislação e fiscalização mais rígidas.
Quase 40 anos depois, basicamente pela mesma falta de segurança, aconteceu a tragédia da Boate Kiss, com 242 mortos e mais de 600 feridos. Seis anos depois, o incêndio de Santa Maria caiu no esquecimento, substituído por outros episódios assustadores que acontecem num espaço de tempo cada vez mais curto. A rigor, na tragédia de Santa Maria, ninguém foi punido e o processo permanece enrolado sem um desfecho à vista. Nesse período, as reportagens da imprensa ainda relembravam e mantinham vivo o interesse da opinião pública sobre a Boate Kiss.
Este ano, no entanto, a tragédia de Santa Maria sumiu do noticiário. Dois dias antes do incêndio ocorrido em 27 de janeiro de 2013 completar seis anos, outra catástrofe de proporções muito maiores monopolizou o noticiário. A avalanche de lama da barragem de Brumadinho deixou um saldo de mortes bem maior do que as tragédias anteriores. O número de pessoas mortas pela lama está estimado em 336, além dos incalculáveis prejuízos econômicos, ambientais e humanos. Era o que poderia se chamar de uma tragédia anunciada, uma vez que há dois anos a barragem de Mariana havia rompido provocando a morte de 19 pessoas.
Nessa toada, fica difícil lembrar de tantas tragédias num país cada vez mais pródigo em acontecimentos sinistros. Para refrescar a memória, em maio de 2018, um prédio ocupado pelo Movimento Sem Teto pegou fogo no centro de São Paulo, deixando seis vítimas. Diante do gigantismo da tragédia de Brumadinho, pouco se fala sobre o incêndio do Museu Nacional, em setembro do ano passado, que destruiu 200 anos de história de um acervo histórico e científico. Se não fosse pelo transtorno que ainda provoca no trânsito, o viaduto que cedeu na Marginal Pinheiros, em São Paulo, em novembro do ano passado, nem seria mais lembrado.
Pode-se imaginar que essas tragédias todas sejam obra do acaso. Mesmo que tenham ocorrido em áreas diferentes, que vão da mineração à preservação de prédios históricos, passando pela conservação de pontes e viadutos, há nesses episódios um fio condutor que demonstra o esgotamento e a incapacidade do Estado brasileiro de zelar pela segurança e de exercer uma fiscalização rigorosa sobre as atividades que podem oferecer risco à sociedade. A decadência da saúde, da segurança e dos problemas de infraestrutura são os sinais mais visíveis dessa falência que coloca em risco a vida dos cidadãos, mas essa falta de fiscalização, a conivência com as ilegalidades e a falta de iniciativa para evitar essas catástrofes revelam o esgotamento do poder público. O estado falido economicamente não consegue mais cumprir uma de suas funções principais: fiscalizar prédios, barragens e pontes para evitar tragédias como essas. Os cidadãos que estão pagando essa conta pesada precisam reagir, exigir a apuração das responsabilidades para que essas catástrofes não se transformem em uma vergonhosa e triste rotina.