A traição do sonho

A traição do sonho

Por lidarem sem maiores problemas com a ficção, com a fantasia, com os desejos e com os sonhos, o cinema e a psicanálise são áreas afins que transitam livremente pelo mundo real e pela fantasia. Basta ver o último filme de Woody Allen, “Meia Noite em Paris”. O espectador está ali, sentado tranquilamente na poltrona, imerso no mundo trivial, similar ao que se apresenta na tela. De repente, sem pedir licença à lógica ou dar maiores explicações à plateia, a historinha banal de um casal visitando Paris muda, de forma imperceptível, do presente para o passado, para que o personagem principal possa mergulhar no mundo onírico, ir atrás de um sonho perdido em uma outra época, mais cheia de glamour.

Só o cinema permite um passe de mágica tão belo. Se Freud tivesse assistido a esse filme de Woody Allen certamente explicaria que essa licença visual do desejo é um artifício cinematográfico para colocar em cena o que não encontra espaço na vida cotidiana. O filme do famoso cineasta, apaixonado por Nova Iorque, tem a ver com o artigo publicado na Folha de São Paulo, no dia 14 de julho, pelo psicanalista Contardo Calligaris, que analisa a outra vida, aquela que poderia ter sido experimentada por nós se, em alguma encruzilhada, não tivesse faltado coragem para correr atrás de um sonho arisco. A reflexão de Calligaris traz à baila a renúncia como uma saída providencial para evitar a desdita. Dizem que interpretar uma obra de arte ajuda a entender melhor a vida real.

No envolvente “Meia Noite em Paris”, o personagem criado por Woody Allen trocou o sonho de escritor por uma outra profissão bem remunerada. Já o colunista da Folha pega o problema pela artéria principal quando afirma que o indivíduo desiste de um sonho para evitar a dor do fracasso. O personagem do filme voltou no tempo considerado ideal para beber na fonte dos artistas e dos escritores pelos quais nutria grande admiração. Descobriu na viagem que os personagens daquela época também admiravam tempos de outrora, ou seja, a volta ao passado pode ser uma porta ilusória, que apenas dá vazão a uma reprimida e doce nostalgia.

Calligaris recebeu muitos e-mails de leitores que chancelam sua teoria, gente que em algum momento da história abriu mão dos próprios desejos. Relatos sobre a escolha inadequada da profissão, um casamento sem sal e um grande caso de amor esquecido numa gaveta do passado chegaram à caixa de entrada do escritor. O texto do psicanalista esclarece que nem todos os desejos são próprios, pois há uma simbiose entre os que são intrínsecos de cada um e os que são incorporados pela abundante oferta de circunstâncias da vida. O parágrafo final traz a questão que inquieta. Assumida a tese de que os sonhos e os desejos fazem parte da essência de cada um, não soa muito bem verificar que a vida filmou uma sucessão de traições do próprio ego, de renúncias pessoais e de adiamentos, numa interminável tentativa de conciliar sonhos autênticos com vontades aparentes. A essa altura, caro leitor, aposto que você já deve estar tentando lembrar se já traiu algum sonho que tenha desejado ardentemente.

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