A trajetória de um chute

A trajetória de um chute

Em sistemas desiguais e injustos, as boas oportunidades sempre são escassas e não contemplam a todos, seja na vida profissional ou de jogador de futebol. Normalmente, “os bem-sucedidos” precisam afinar três variantes: uma dose de talento, oportunidades concretas e um pouco de sorte para estar na hora e no lugar certo. Essas circunstâncias são comuns nas histórias dos 23 jogadores e do treinador que representam o Brasil na Copa da Rússia. Antes de ser o técnico consensual para a Seleção Brasileira, Tite encerrou a trajetória de jogador, precocemente, com nove cirurgias no joelho e muitas infiltrações. Nos 10 primeiros anos de carreira, foi demitido de vários times pequenos do Rio Grande do Sul até virar o jogo e ser reconhecido pelos grandes clubes.

A série com o perfil dos 23 jogadores do Brasil nesta Copa, apresentada pelo Jornal Nacional, mostrou que o “passaporte para o sucesso”, na grande maioria das vezes, depende também da mão amiga, da persistência e do sacrifício. Uma das histórias mais comoventes é a do atacante Taison, membro de uma família de 11 irmãos criados só pela mãe. A matriarca ajudava em sopões comunitários e trazia as sobras para alimentar a numerosa prole.

Embora fosse bom de bola numa equipe amadora de Pelotas, sugestivamente denominada Progresso, o franzino Taison, assim batizado em homenagem ao possante lutador de box, foi descartado sumariamente nas primeiras peneiras. Sua esquálida compleição física não era própria para um esporte em que a força e a robustez são importantes. Anos mais tarde, já mais encorpado, encarou um novo desafio. No dia do teste, comunicou ao treinador que estava com fome. Prontamente, o providencial técnico patrocinou uma panelada de macarrão puro. A injeção de carboidrato foi suficiente para aliviar a fome. Taison foi aprovado nas categorias de base do Internacional e, hoje, ganha uma fortuna, jogando em um clube da Ucrânia. Ao final do depoimento, emocionado, disse que se lembra dessa história cada vez que vê um prato de macarrão. 

Acompanhei a história de um conterrâneo, contemporâneo, que foi tetracampeão do mundo pela Seleção Brasileira nos Estados Unidos. A grande maioria dos meninos que sonha em ser jogador de futebol segue o caminho das escolinhas da sua cidade. Ainda franzino, com 13 ou 14 anos, o canhoto Branco chegou ao infantil do Grêmio Bagé. Era o clássico “fominha de bola”, pois além dos treinos e das partidas, não recusava nenhum convite para um jogo, a qualquer hora do dia e da noite. Os mais costumeiros eram domingo de manhã cedo com um frio de rachar. Não era muito chegado aos estudos, preferia a convivência com os amigos que fazia nos campos de várzea e nas quadras de futebol de salão. Por baixo dos agasalhos, naquele frio rigoroso de Bagé, lá aparecia o Branco com seu calção providencial. Assim, onde faltasse um jogador, ele estava sempre pronto para entrar. Em poucos segundos, antes que aparecesse um concorrente, tirava as calças e saía correndo. Rodando pelos campos foi calibrando a pontaria.  Desenvolveu um chute potente de média e de longa distância com a perna esquerda. No futebol, os canhotos legítimos, de ofício, costumam ser bons de bola.

Seu destino mudou num jogo. Seu time profissional, o Guarany de Bagé jogou contra o Internacional no Beira Rio. O Colorado estava à procura de um substituto para Paulo Roberto Falcão, que tinha sido vendido para a Roma da Itália. O talentoso zagueiro Mauro Galvão estava sendo experimentado no meio campo e topou com uma marcação implacável de Branco. Além de anular o craque colorado, a atuação destacada chamou a atenção do Fluminense que o contratou. Em 1984, sob o comando de Carlos Alberto Parreira, o time das laranjeiras foi campeão brasileiro. O resto da história em que o destino conspirou a favor é bem conhecido. Dez anos depois, na Copa dos Estados Unidos, Parreira era técnico da Seleção. Mesmo contundido, Branco estava entre os convocados. No futebol se formam sólidas parcerias. Estava na reserva, mas no jogo contra os Estados Unidos o “gentleman” e poliglota Leonardo deu uma inexplicável cotovelada num adversário e foi expulso. Branco assumiu a titularidade e no emblemático jogo contra a Holanda fez o gol da vitória com a sua potente canhota treinada nos campos de Bagé. O replay do lance mostra que o predestinado chute de três dedos fez a famosa curva ao contrário, desviou da barreira, passou no vão das costas de Romário, bateu no pé da trave e entrou, deixando o goleiro da Holanda com cara de incrédulo. Na comemoração, correu alucinado, como se estivesse extravasando a emoção de uma vida inteira. Aquele chute certeiro de poucos segundos, chamado pelos amigos de bomba redentora, era o ápice da carreira e sintetizava a história de superação de um guri pobre e franzino que conseguiu escrever o nome na história das Copas e do futebol brasileiro. São as peripécias do destino. 

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