
Um novo maio de 1968
Talvez o Brasil e o mundo estejam precisando de um novo maio de 1968, um movimento forte e pacífico para reabrir os horizontes e ressuscitar as utopias. A maioria dos filósofos admite que não dá para viver sem elas. Recapitulando hoje o movimento francês de meio século atrás, um dos mais expressivos sonhos de um mundo melhor, fica até difícil evidenciar as razões que fizeram a revolucionária manifestação eclodir de maneira inesperada e ganhar projeção mundial. Na pauta estavam ideias avançadas para o padrão ocidental de educação e de conquistas econômicas até aspirações mais específicas como o desejo dos estudantes universitários de entrar no quarto das estudantes. Houve greves, manifestações, ocupações de fábricas e barricadas, mas tão rápido como surgiu o movimento se esvaiu. Contudo, o tempo curto foi suficiente para espalhar pelo mundo as sementes das ideias de liberdade. Os mais saudosistas consideram a epopeia francesa como um momento marcante para os direitos humanos e a busca pela liberdade.
Meio século passou. Por se tratar de um valor abstrato, a liberdade plena não existe e justamente por isso o ideal de utopia se contrapõe. O brasileiro conquistou a liberdade política, escolhe a maioria dos representantes, mas nem por isso os problemas sociais diminuíram. Um projeto bem acabado de estado, de país e de nação regidos por valores éticos com distribuição de renda e condições dignas de vida ainda não passa de uma quimera diante da conturbada realidade atual. Na direção oposta, a corrupção, a violência e os problemas da saúde, para citar apenas três, continuam asfixiando a maioria da população. Além de dominar o Rio de Janeiro, a criminalidade e o tráfico avançam sobre outros estados, aproveitando a falta de fiscalização nas fronteiras. A corrupção no país parece um poço sem fundo que não seca. O cidadão comum assiste perplexo a um filme medonho em que o Estado foi incorporado como se fosse uma propriedade da elite. A troca de governos e de partidos não tem sido suficiente para mudar essa saga. Cinquenta anos depois do maio de 1968, do Brasil e da França, e 30 anos após a volta das eleições diretas, o processo de depuração está apenas começando. Em alguma utopia, será possível apartar ou atenuar o domínio da elite sobre o Estado?
O processo de desestruturação coletiva está refletindo bastante nas condutas individuais. Enquanto a corrupção contamina as estruturas públicas, no plano individual, práticas antiéticas são reproduzidas numa espécie de contaminação geral do sistema. Gatos, burlas, pequenas fraudes, atos de má fé, intolerância, disseminação de notícias falsas, atos de egoísmo, protestos e reações puramente corporativistas ganham proeminência no mundo on e off-line. Na fase mais aguda dessa grande diáspora nacional, as diferenças políticas e ideológicas começam a ser resolvidas pela violência das balas.
A sucessão de desmandos, das idas e vindas da alta cúpula do Judiciário, parte desse jogo de interesses, faz brotar a desesperança, a falta de perspectiva e o rebaixamento das expectativas. Estudos alertam sobre o efeito que a conjuntura desfavorável tem provocado com maior intensidade nos jovens. De maneira restrita e fechada, escutam-se relatos de suicídios em escolas públicas e particulares como um possível sintoma da incompreensão, do individualismo exacerbado e do destempero da situação atual. A tímida recuperação econômica pode ser atribuída a inúmeros fatores bem conhecidos e específicos, mas certamente a falta de entusiasmo e de confiança no momento atual produzem efeitos negativos na retomada do desenvolvimento.
Não se trata de criar um panorama sombrio, de que tudo está perdido, mas apontar a necessidade de uma reviravolta na postura de cada cidadão brasileiro. Na mesma proporção em que há políticos e funcionários públicos corruptos, também há os corruptores, empresários e pessoas interessadas em levar vantagem. No Brasil de hoje, há grandes e pequenas irregularidades. Não se pode só apontar o dedo para cima sem também olhar para as práticas corriqueiras do dia a dia. De nada adianta dizer que os problemas éticos brasileiros são uma maldita herança portuguesa. O ciclo precisa ser rompido na política, na economia, nos negócios, nas relações pessoais, na convivência profissional e familiar. A fase das reclamações inconsequentes em pequenas rodinhas tem que ficar para trás. O brasileiro precisa ser intolerante com os maus hábitos que ameaçam o equilíbrio e a estabilidade social.