Um ponto fora da curva

Um ponto fora da curva


Se não bastassem as complicações que o mundo já oferece, uma onda de neologismos tomou conta da sociedade moderna. Em parte, isso se justifica. Há uma série de novas situações e conceitos que aparecem, exigindo definições, representações que possam dar ao coletivo uma ideia, uma noção de tempo, de espaço e, principalmente, de transformação. Assim como os hippies foram os pacifistas dos anos 60, os black blocs são os anarquistas que  hoje promovem  a quebradeira indistinta e generalizada nas manifestações de rua.

E não adianta escrapetear. Essa verborragia encontrou nas mídias sociais o campo aberto para corcovear sem fronteiras tal qual um potro sem dono. Em um tempo distante, alguém estava perfeitamente enquadrado nos padrões sociais se estivesse na “crista da onda”. No começo dos anos 80, muita gente boa perdeu o emprego por conta da “reengenharia”. Aprendida a dura lição do desemprego, a palavra que entrou na moda foi a bendita empregabilidade, ou seja, o profissional-trabalhador deveria dar um up grade no portfólio e manter o network  atualizado para criar uma imagem proativa.

Recentemente, a onda de novas palavras, com sentido original ou derivado, atingiu em cheio as Ciências Sociais e outras áreas do conhecimento. Os currículos e as disciplinas passaram a ter como característica essencial a transversalidade. Caso você não saiba, cada neologismo cria uma unidade léxica, o repertório de palavras da língua. Sem exageros, o dinamismo desse glossário revela a riqueza gramatical de um idioma, pois a cultura precisa se renovar constantemente. Nos últimos tempos, o prêmio hors-concours vai para a palavrinha foco que devido a sua larga e indistinta utilização se transformou na razão da nossa existência. Diga-se de passagem que o vocábulo tem provocado mais discórdia do que harmonia, tantos nas relações pessoais quanto profissionais. Tem muita gente sendo pesadamente acusada de viver e trabalhar sem foco, enquanto outros estão completamente perdidos porque “focam” em tudo o que aparece pela frente.

Neste verdadeiro cipoal da hermenêutica, sorrateiramente, uma expressão foi sendo introduzia no linguajar dos coaches e dos consultores, abriu espaço no juridiquês dos juízes e dos advogados e ganhou destaque nas páginas dos jornais. O ponto a que chegamos é o “ponto fora da curva”. Dia desses, um ilibado ministro declarou que a demora do Supremo Tribunal Federal em determinar a prisão do deputado federal, Natan Donadon, foi um ponto fora da curva. Todavia, como sempre acontece com as novidades, essa expressão ganhou significado bem mais abrangente quando passou a representar esteriótipos. A expressão corriqueira utilizada por um ministro já serve também para enquadrar o funcionário que apresenta um comportamento diferente dos demais dentro da empresa. A homossexualidade assumida de Daniela Mercury, a menina de Florianópolis que denunciou a precariedade da escola no facebook e o funcionário da Siemens que revelou a propina paga pela empresa a governantes seriam pontos completamente fora da curva?

Como surgiu há pouco tempo, essa questão existencial ainda está sem resposta. Fica registrada aqui a sugestão deste tema para a próxima sessão com o psicanalista. Para subsidiar a discussão, vale acrescentar que curva “significa o traço que representa, graficamente, um fenômeno qualquer, a figura geométrica gerada pelo movimento contínuo de um ponto no espaço”. O ponto fora seria algo excepcional, pois até a curva precisa de certa constância. Ser muito diferente do padrão pode ser considerado algo anormal ou quanto mais fora da curva for o indivíduo mais chance ele tem de ser feliz, uma vez que possui uma luz própria que o diferencia dos demais? É melhor ser mais ou menos igual ou muito diferente? A sua autodefinição e as opções que você faz, seu modo de pensar, agir e de se comportar levam em conta os demais pontos da curva do padrão social? Afinal de contas, meu caro leitor (a), você se considera um ponto fora, dentro ou bem em cima da curva?

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