Um técnico beijo de época

Um técnico beijo de época

A polêmica bicota na novela das nove teve mais repercussão nas mídias sociais do que na grande imprensa. Os jornais de circulação nacional trataram o primeiro beijo gay da televisão brasileira com descrição, sem grande destaque. Por ser o palco da inusitada cena, a Rede Globo foi o veículo que mais espaço concedeu ao beijo que se tornou um marco da televisão brasileira, a exemplo do que ocorreu com o primeiro inocente selinho heterossexual na TV, em 1952, com o “escandaloso” biquíni da grávida Leila Diniz, nos anos 60, com a “bombástica” declaração de amor da cantora Daniela Mercury, que assumiu a paixão por uma mulher, e tantos outros momentos de ruptura com a moral vigente.

No meio da polêmica, sobrou para a Rede Globo, sempre muito criticada pelo poder de influência que exerce na sociedade brasileira. De fato, a emissora fez jus a má fama, pois já aprontou muitas na história do Brasil: apoiou o golpe militar de 1964, tentou manipular o resultado de eleições, omitiu mobilizações importantes como a campanha das Diretas Já e até hoje desvia a atenção da opinião pública, dando mais espaço para a crise da Ucrânia do que para relevantes problemas nacionais. Por isso, muita gente quis “vilanizar” a emissora pela promoção e a maior exposição das relações homossexuais nas telenovelas. Ao abordar a homossexualidade nas produções, na última novela eram três personagens que faziam parte do núcleo central, a Globo nada mais fez do que reproduzir na ficção uma realidade que já podia ser percebida, há muito tempo, nas ruas de qualquer cidade. Diga-se de passagem que o primeiro beijo gay na televisão brasileira demorou muito para ocorrer. Vários países latino-americanos, como México, Colômbia, Peru e o Chile, já quebraram esse tabu faz tempo. Na passional Argentina, o beijo gay foi selado há mais de 20 anos e não é por isso que a economia do país está num fubá sem fim. Em vários países do mundo, entre eles o modesto Uruguai e o gigantesco Brasil, pessoas do mesmo sexo podem casar e formar família. Por que não poderiam se beijar?

Como dizem os filósofos mais sábios, nesta azáfama é preciso dar tempo ao tempo sem escrapetear muito nas redes sociais. Não se trata de um modismo. Ninguém vai assumir um comportamento homossexual, porque viu casais gays na TV. Por 20 séculos, a humanidade conviveu com uma violenta repressão sexual em que homens e mulheres viveram infelizes, sofreram com o preconceito, foram ofendidos, humilhados e até mortos. Ainda hoje homossexuais são assassinados a pauladas nas ruas das capitais. Muita gente, que se declara sem preconceito, vê a homossexualidade como um desvio de comportamento. Essa afirmação cai por terra diante de um número cada vez maior de pessoas que assumem uma nova opção sexual, de forma natural, em busca da felicidade. O maná das religiões também não dá suporte à rejeição. Esses epítomes dizem que fomos criados a imagem e semelhança do criador e que todos somos filhos de Deus. A fé não municia a discriminação, pelo contrário promove a afetividade indistinta baseada no princípio da irmandade.

Apesar do beijo do Félix e do Niko ter sido comemorado nos bares, pelos homossexuais e pelos defensores da causa, como se fosse um gol em final de Copa do Mundo, ainda há um longo caminho a percorrer que passa pela aceitação familiar, o fim da discriminação no trabalho, o combate ao bullying em ambientes coletivos, a garantia de direitos iguais e até uma repensada no teor das piadas grosseiras e ofensivas, comuns em emissoras de rádios e TV e nas rodinhas informais. A democracia é o regime da liberdade que tenta conciliar os direitos e as obrigações individuais  com as coletivas. Esse espírito de tolerância, com respeito às opções individuais, vai propiciar uma convivência fraterna, sem traumas entre irmãos, sobrinhos, filhos, amigos, netos, colegas, vizinhos e familiares que fizerem uma opção sexual diferente.

A homofobia não desaparece somente com declarações vazias, da boca para fora. “Não tenho preconceito, mas...” Um longo processo de entendimento terá de ser construído, sem que o Estado tenha que interferir, excessivamente, nos assuntos privados que acontecem entre quatro paredes. Por este prisma, pensando bem, não vem muito ao caso saber se o affaire entre o Mateus Solano e o Thiago Fragoso foi apenas um beijo técnico, sem maiores consequências, desses que todos os dias a gente vê na TV, ou se foi um beijo que vai marcar época na história do comportamento sexual brasileiro. Na prática, isso não interfere nos preços do varejo e na cotação do dólar que, por sinal, não param de subir.

Compartilhar: