
Uma surfada pela sexualidade
Seu namorado quer ver? Mostre pra ele”. As provocações de “Bruna Surfistinha”, o filme mais badalado da temporada 2011, já começam no cartaz de divulgação. Antes do lançamento, a nova sensação do cinema nacional já causava reações veladas e ostensivas por conta do tabu da temática com comentários dispares entre homens e mulheres. O filme se baseia no livro escrito por Raquel Pacheco “O Doce Veneno do Escorpião”, lançado em 2005, que vendeu 250 mil exemplares e ainda teve ampla repercussão na internet. Por conta das contingências da vida, Raquel virou Bruna Surfistinha, a garota de programa mais famosa do país. Filha adotiva de um casal de classe média alta de Sorocaba, ela saiu de casa brigada com os pais e até hoje não conseguiu se reconciliar com a família. Na escola, ainda na adolescência, Raquel alega que foi vítima de bullying pelos colegas.
Em qualquer época, sempre há na sociedade um jogo de aparências. Os dias atuais até podem ser classificados como avançados nos quesitos do comportamento, vide a permissividade crescente e a precocidade sexual dos adolescentes. Os principais difusores dessas novas facetas do comportamento moderno seriam a banalização do sexo na TV e na Internet. Dessa aparente liberalidade dos costumes brota a falsa impressão de que os tabus e os comportamentos mais pudicos caíram definitivamente por terra. Não é bem assim. Quando a realidade se materializa nua e crua, sem cortes, em uma tela grande com cenas explícitas de sexo e de nudez, a sociedade puxa de volta a velha moral conservadora armazenada no consciente coletivo que determina os padrões de comportamento que podem ou não serem aceitos.
Há um mérito inegável no filme do estreante diretor Marcus Baldini: colocar a prostituição na fogueira das discussões permitindo interpretações sob prismas diversos: o moralista, o religioso, o idealista, o ideológico o inquiridor e o politicamente correto. Fazendo os devidos cortes na hipocrisia, ninguém desconhece que a prostituição faz parte do cotidiano brasileiro. Na beira das estradas, meninas sobrevivem se vendendo para caminhoneiros por R$ 10,00. No high society, grandes empresários selecionam modelos em books superproduzidos pagando generosos cachês com alguns zeros a mais. Um fim de semana completo para uma modelo top pode render até R$ 10 mil. Jatinhos fazem o serviço de delivery. Nas salas do mundo corporativo e nos melhores camarins da teledramaturgia nacional são incontáveis as histórias de promoções e de papéis negociados à exaustão.
Inconscientemente ou pressionado por essa moral conservadora, apesar da fama, o próprio cinema nacional tirou de cena, por mais de 20 anos, as cenas de sexo e de nudez, que raramente passaram a ser exibidas. Consolidou-se o modelo censurado, imposto nos anos 70, época em que a pornochanchada literalmente queimou o filme, enquanto servia como válvula de escape para a repressão política institucionalizada pelos militares. O clímax do que na época era considerado algo próximo à perversão foi “A Dama do Lotação” com Sônia Braga —em grande fase — se roçando nos passageiros de um ônibus suburbano.Daquela época para cá, o cinema nacional ficou meio pudico. Parece que havia um certo receio dos diretores de abordarem a sexualidade do brasileiro sem resvalarem para o grotesco ou para a baixaria pura. Além de ter convidado o simpático jogador Dentinho para fazer uma ponta silenciosa no filme, o corintiano diretor não fugiu da complexidade do tema e mostrou a prostituição na suas diferentes faces, da mais sórdida à mais requintada. Filmou o mau gosto chocante do aluguel de carne humana por preço barato (R$ 20,00) para pura satisfação do prazer mais instintivo. Também desnudou os programas de luxo temperados por altas doses de cocaína. Algumas cenas provocam asco, muitas são hilárias e outras tantas, extremamente sensuais. Apesar da avalanche de relações, em duas horas de filme, a estrela solitária do mundo prostituído simulou apenas um único orgasmo. Ao introduzir o componente da interatividade no mundo privê, dando nota para o desempenho sexual da clientela e divulgando as performances na internet, Raquel Pacheco e Bruna Surfistinha romperam o silêncio enrustido que permeia a sociedade e abriram a caixa-preta dos tabus camuflados para mostrar na tela o que rola dentro de quatro paredes. De forma mais amena, “De pernas pro ar”, que recentemente esteve em cartaz, trilhou o mesmo caminho.
Para que a arte de fato imitasse a vida sem os truques cinematográficos, Deborah Secco despiu-se dos escrúpulos para encarar a personagem de frente. A atriz conseguiu ir além das estereotipadas piriguetes que costuma fazer com sucesso nas novelas do horário nobre. Teve coragem para encarnar uma personagem real em um papel que a maioria das atrizes recusaria.
Independentemente do julgamento dos defensores compulsivos por sexo ou da indignação que possa pulsar nas mentes mais recatadas, fragmentos da sexualidade masculina brasileira, tipificados na heterogênea clientela de Bruna Surfistinha, desfilam nas salas carcomidas dos bordéis baratos e nas suítes dos apartamentos luxuosos. Num primeiro momento, o espectador pode se sentir tentado a escolher um lado, fazer o julgamento moral, mas talvez não seja isso o que mais importa. A tela apresenta uma surfada aberta a interpretações sem fazer apologia da prostituição. O filme também se desvia do julgamento moralista, da tentação de arremessar uma chuva de pedras na direção da Geni da vez, mas tal qual o traveling da câmera dá uma cinematográfica surfada pela sexualidade brasileira.