
A versão selfie
Na comemoração dos 20 anos, a Feira do Livro de Ribeirão Preto experimentou um novo formato. A essência das feiras literárias se materializa nos encontros presenciais onde o público tem a oportunidade de entrar em contato com os escritores e os livros. Devido à pandemia do coronavírus este ano, o evento migrou para a internet. A filosofia racional ensina que não se pode ter tudo na vida e que em alguns momentos é preciso fazer escolhas. Na atual conjuntura, momento em que o mundo ainda corre atrás de uma vacina, a segurança precisa falar mais alto.
A principal atividade da Feira do Livro de 2020 foi um ciclo de palestras sobre 20 temas, 20 palavras que ganharam notoriedade no Século XXI. O projeto culminou com o lançamento de um e-book, disponível gratuitamente no site da Fundação: agenda, cidadania, corrupção, democracia, disruptura, empatia, empoderamento, fake news, googlar, globalização, governança, humanização, identidade, intolerância, protagonismo, refugiados, resiliência, seflie, sustentabilidade e terrorismo. Uma olhada superficial sobre as palavras escolhidas pela Feira de 2020 revela que a sociedade contemporânea padece de muitos males, alguns deles preocupantes como o terrorismo, a intolerância e as fake news.
Na condição de coautor do livro, o meu capítulo analisou uma palavra mais amena de consequências ambíguas. Quando se trata de comportamento humano, em tempos de tantas mudanças, nada pode ser muito taxativo para não se cair na redução maniqueísta do certo ou do errado, do bem ou do mal. A discussão ajuda a encontrar parâmetros para estabelecer limites e separar o momento de descontração da compulsão doentia. Desde que o casamento entre a expansão das redes sociais e as câmeras de vídeo acopladas aos celulares viabilizou a postagem instantânea, a sociedade assistiu a um desvario na disputa pelo protagonismo da narrativa. O papa e o guarda da esquina descobriram o prazer do momento de celebridade. Teve gente que escalou o Pico do Evereste para conseguir uma foto diferenciada. Outros ignoram que o campo de concentração em Auschwitz, na Polônia, onde judeus foram incinerados em câmeras de gás, não é um lugar apropriado para fotos festivas.
A palavra selfie define a pessoa na sua essência e subjetividade. É como se cada indivíduo apresentasse ao mundo uma versão de si mesmo, uma vez que o reconhecimento e a própria definição dependem, em parte, do outro. Pode se considerar natural que cada pessoa seja generosa consigo mesmo. À medida que vai postando, uma, duas ou 100 fotos constrói uma imagem nas redes sociais. Os estudiosos do tema alertam que se a imagem projetada se tornar muito diferente da real, expressando um mundo cheio de glamour e só de bons momentos, isso pode causar problemas como decepções e angústias. O cultivo desmedido e exagerado da própria imagem enseja um comportamento narcisista, pois a rede agora permite que se publique indefinidamente experiências pessoais, mesmo que elas sejam monótonas, sem muita relevância ou interesse.
No livro Vigilância Líquida, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman captou bem a inversão de valores do mundo contemporâneo. Tempos atrás, até mesmo sob a proteção de regras constitucionais, as pessoas faziam questão de manter a vida privada longe dos olhos alheios. De uns tempos para cá, a situação se inverteu. A vida pública e a privada se misturaram. O post sem curtidas significa desprestígio, falta de importância e frustração. Mas esse nem é o prejuízo maior. O paradoxo do exagero das selfies mostra que as pessoas estão trocando o prazer das refeições, dos encontros e das belas paisagens pela foto fria e contato com alguém distante. Na interminável troca de mensagens em busca da autoexposição, abrem mão das sensações reais pelos retornos virtuais. A obsessão pelo registro imediato pasteuriza e tira o sabor de momentos importantes. Por essa estranha lógica, mais vale procurar um ângulo perfeito para a foto do que curtir a plenitude das emoções da vida real.