
Viagem para o rincão
Na faculdade, já na aula inaugural da teoria da comunicação, os professores ensinam que o jornalismo é a arte de bem contar histórias. Por excelência, um bom jornalista é um bom contador de histórias. Para simplificar, a metáfora mais banal compara a profissão ao morador que abre a janela para contar algum acontecido ao vizinho ou a quem está passando. Mesmo que o jornalismo pressuponha a seriedade, o ocorrido flui melhor quando esse colóquio fica temperado pela informalidade. No entanto, a simplicidade do exercício da profissão para por aí, pois a partir da coisa feita entram em cena outras circunstâncias que tornam a reportagem uma tarefa complexa, que exige uma apurada destreza com a significação das palavras.
A questão em pauta precisa ser nova e, principalmente, interessante para prender a atenção do receptor, seja um leitor de jornal ou de revista, o espectador da TV ou o ouvinte do rádio. A notícia e a história são parentes em primeiro grau do causo real ou folclórico. Como a concorrência dos ruídos é grande e o mundo ficou bem mais disperso, quem conta não pode perder o “timing” da narrativa, precisa discernir bem o acessório do essencial para editar a parábola sempre de olho no tempo, mercadoria escassa para o meio e para a plateia. Como não há um fim pré-definido, a sequência da reportagem vira um quebra-cabeça costurado pela lógica. O texto ainda precisa ser apresentado de forma bela e atraente para que não se perca o rumo da prosa.
Tanto a profissão de jornalista quanto a efêmera condição de contador de causo devem ser talhadas pela sensibilidade. Às vezes, na singela história corriqueira está escondida uma lição ou uma virtude universal. A frieza e o distanciamento não ajudam a desvendar a riqueza dos detalhes que podem ser imperceptíveis aos olhos desatentos. A emoção é como sal, só funciona na dose certa. Em excesso, pode obnubilar a percepção e comprometer, irremediavelmente, a transcrição da realidade. Eis os pré-requisitos para o exercício da profissão que, diariamente, enfrenta o desafio de traduzir o mundo em palavras com a precisão e a responsabilidade de um cirurgião cardíaco.
Depois de vaguear pela agronomia, o jornalista Marcelo Canellas, repórter da TV Globo, tomou por ofício de vida a contagem de histórias. Sem deixar os pressupostos da notícia de lado — o texto conciso e a busca pela objetividade — suas matérias na TV sempre deixaram no ar a conotação da crônica, desde o início da carreira no Rio Grande Sul, passando pela EPTV Ribeirão, no final dos anos 80, até a projeção nacional nas emissoras da Rede Globo. Há 11 anos, o viés de cronista de fatos, aparentemente insignificantes, aflorou de maneira mais intensa com a publicação de textos semanais no jornal A Cidade e no Diário da sua amada Santa Maria da Boca do Monte.
Depois de 25 anos de carreira, as andanças deste santa-mariense de quatro costados foram condensadas em 70 crônicas publicadas no livro “Províncias — Crônicas da Alma Interiorana” — lançado em Ribeirão Preto no projeto Entre Feiras. Na síntese de apresentação feita pelo próprio autor, o jornalismo explicita as contradições da condição humana. O homem caminha e navega para lugares distantes sem nunca romper os vínculos com a sua origem. O itinerante Marcelo Canellas se enquadra no conceito como exemplo. Por conta da profissão, já andou bastante, mas ainda permanece com a alma referenciada nas lembranças da infância em Santa Maria. Afinal, todo o ser tem uma face provinciana e universal muito bem resumida pelo romancista argentino Ernesto Sabato. A máxima está transcrita na apresentação do livro: “se o escritor viaja, que seja para submergir, paradoxalmente, no lugar e nos seres imaginários de seu próprio rincão”.
Foto: Luiz Cervi
Murilo Pinheiro
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