
Viva a incerteza
O ser humano precisa de convicções para poder viver mais tranquilo com um pouco de certeza sobre questões mais complicadas e até mesmo as mais simples do cotidiano. Os cientistas, por exemplo, passam a vida inteira tentando encontrar respostas precisas, mas depois de décadas de estudo concluem que tudo pode ser absolutamente relativo. No meio dessa busca incessante brotam por aí muitos mitos (fantásticos relatos orais), crenças (convicções profundas) e crendices (obras do imaginário popular sem raízes científicas). Nos dias de hoje, há uma disseminação de teorias furadas e uma avalanche de ideias, conceitos e “verdades” que ninguém sabe ao certo explicar de onde vêm e muito menos comprovar a veracidade.
Os mais antigos certamente hão de lembrar. Muitas crendices, que agora até soam engraçadas, por muitos anos, censuram rigidamente hábitos e comportamentos. A morte era certa para quem comesse e entrasse na água em seguida, embora somente o esforço excessivo possa fazer algum mal. Nos anos 60, as mulheres que tinham um filho eram submetidas a uma anti-higiênica quarenta que proibia lavar a cabeça. Quem se atrevesse a misturar uva com melancia morreria com o estômago endurecido. A mesma lógica fatal e perversa se aplicava a manga com leite. Na sábia ditadura dos mais velhos, a ninguém era dado o direito de questionar. Lá pelos anos 80, muita gente inteligente acreditou piamente que garrafas pets com água, enfileiradas, faziam o medidor de energia andar mais devagar. Tempos depois veio outra onda. Uma colherzinha colocada dentro do refrigerante aberto impediria a saída do gás. E você, acha que dá azar passar por baixo da escada e deixar um sapato virado? “Se uma coruja piasse no portão era desgraça na certa.”
De uns tempos para cá, a crítica livre e independente dos mais novos desmistificou quase todas essas ideias. Não existem mais verdades absolutas. Não acreditar passou a ser permitido. Um pensamento muito usual diz que todo o bem que você fizer agora, voltará para você lá na frente. Pode ser que sim, pode ser que não. Certamente você conhece alguém com espírito solidário que perdeu a vida de forma inexplicável em algum acidente. Neste país de educação precária, até mesmo as pessoas mais altruístas são destratadas. O mais generoso dos doadores pode ser vítima de um assalto. O funcionário mais zeloso de uma companhia aérea é humilhado por um juiz absolutista. No Rio de |Janeiro, uma mulher que estava dormindo em casa foi morta por uma bala perdida. Seria bem fácil viver se a justiça fosse algo programado, mais infelizmente não há nenhuma certeza sobre isso. Essa predestinação que tanto conforta pode não existir.Stephem Hawking, um dos maiores cientistas da atualidade, na sua principal obra — Uma breve teoria do Tempo — teve a coragem de rever toda a sua teoria e admitiu publicamente muitos enganos depois de uma vida dedicada à pesquisa. O cientista argumenta que há uma infinidade de leis e forças desconhecidas que regem o universo com probabilidades infinitas que tornam os desencontros muitos mais prováveis do que os encontros. Mais uma verdade que carece de comprovação. Concretamente, os cientistas e o próprio Papa tentam superar a arcaica polêmica que colocava em campos opostos a religião e a ciência. “O universo é governado pelas leis da ciência, mas as leis podem ter sido criadas por um Criador”, escreveu Hawking no livro que fracassou ao tentar formular uma equação elegante que representasse a origem da contagem do tempo. Esse seria o começo de tudo. Para o cientista, se tudo estivesse programado, se todos os dogmas fossem aceitos pacificamente, a vida não teria muita graça. Seria uma chatice só. Por contraditório que possa parecer, o mundo torna-se desafiador e bem mais interessante porque está mais cheio de dúvidas do que certezas. A motivação está associada ao risco, a ansiedade e a expectativa de não saber o que acontecerá um pouco mais adiante. Chega até a provocar um mal-estar, mas as certezas e as convicções arraigadas aprisionam, forjam uma segurança aparente, impedindo a passagem das experimentações enriquecedoras. Quem segue muito os ditos populares e o padrão social vigente fica amarrado a um jeito de viver que talvez não seja fruto da livre escolha. Vira um prisioneiro inconsciente. Há que se ter muito cuidado com tudo aquilo que já vem pronto. Talvez valha a pena dar uma chance ao que parece improvável. O caminho da liberdade passa pela coragem de romper com as certezas aparentes. Viva a incerteza!