A cartilha e os credos

A cartilha e os credos

A religião, a política e a sexualidade estão se misturando no Brasil, o que sempre provoca muita confusão. A maior contribuição para o desordenamento veio justamente de quem deveria dar exemplo e contribuir para organizar melhor a vida em sociedade. O excesso de exposição subiu à cabeça dos nobres ministros que fazem parte da mais alta corte do país e que agora se sentem avalizados para decidir tudo, apesar de nunca terem sido eleitos nem mesmo por seus pares para os cargos que ocupam. Em recente decisão, o egrégio Supremo Tribunal Federal (STF) provocou um retrocesso em uma área em que o Brasil estava avançando. Depois de séculos de uma indesejável associação entre o Estado Brasileiro e o catolicismo, a sociedade vinha ampliando o sentido laico para garantir que a opção religiosa seja uma livre escolha de cada um, sem a interferência do poder público. 

A religião deve ser entendida como algo próprio do indivíduo, da sua família e das suas origens. Nas escolas públicas, mesmo que de forma não obrigatória, não cabe o ensino religioso nas inúmeras vertentes, sob pena de o Estado induzir um determinado credo. Os ministros estabeleceram que as escolas serão obrigadas a oferecer de modo equânime, sem obrigatoriedade, todas as correntes do ensino religioso, o que se sabe de antemão tratar-se de tarefa dificílima. No final de setembro, o STF julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade na qual a Procuradoria-Geral da República pedia para estabelecer que o ensino religioso nas escolas públicas não estivesse vinculado à religião específica e que fosse proibida a admissão de professores na qualidade de representantes das confissões religiosas. Por maioria dos votos (6 x 5), os ministros entenderam que o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras pode ter natureza confessional, ou seja, vinculado às diversas religiões. A escola laica, plural e inclusiva está em pleno processo de construção e o ensino religioso doutrinário e exclusivista não se coaduna com essa nova formulação. 

Em muitas escolas públicas do país falta estrutura para ensinar o básico e os professores ganham mal. No horário em que uma aula religiosa estiver sendo oferecida não há um plano B para que os alunos que não querem assistir. Não cabe à escola promover a aproximação com grupos religiosos. Essa função, em tese, cabe aos pais que podem matricular os filhos nas instituições que professam a sua religião. A escola deveria deixar este tema complexo, que envolve a própria existência do homem, para as famílias resolverem. O Estado não precisa se intrometer nesse assunto. As instituições de ensino poderiam aproveitar esse tempo para ensinar, por exemplo, muita cidadania que, no fundo, pode ser considerada um viés da prática religiosa. O mundo atual está cheio de carências e essas aulas poderiam demonstrar que as pessoas precisam respeitar as diversidades, preservar o patrimônio público, ter consideração pelos idosos, cuidar do meio ambiente, não estacionar em vagas para deficientes, ser civilizado no trânsito e nas redes socais e por aí vai. 

Bem ao contrário do STF, a Câmara de Vereadores tem uma larga tradição na aprovação de projetos eleitoreiros, inconstitucionais e, muitas vezes, retrógrados para não dizer medievais. Quase na mesma data da votação no Supremo, apesar da flagrante inconstitucionalidade, a Câmara de Vereadores aprovou projeto que restringe a educação sexual nas escolas públicas, este sim um tema que precisa fazer parte da formação dos estudantes. Embora seja um assunto que exija cuidados na sua abordagem, a escola deve promover a educação segura, através da disseminação de informações para ajudar a quebrar os tabus da sexualidade. Esse conhecimento evitaria, por exemplo, que meninas fiquem grávidas precocemente, impediria que adolescentes contraiam doenças sexualmente transmissíveis e faria com que aplicação de vacinas fosse um fator eficiente de proteção à saúde. Os defensores da proibição dizem combater a “erotização da infância”. Para esconder o viés cerceador misturam pornografia com educação sexual. Quer queiram ou não, o mundo está bastante erotizado, basta olhar as novelas, os comerciais de TV e a forma como as pessoas se vestem nas ruas. Se a cartilha está inadequada, o mais sensato é reavaliar o conteúdo. Eliminar pura e simplesmente a educação sexual das escolas significa retroceder, deixando uma geração despreparada para lidar com a realidade com a qual convive diariamente nas ruas. 

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