Cortando a própria carne

Cortando a própria carne

A derrota do Corinthians diante da Ferroviária estava sendo decretada com mais um erro grosseiro de arbitragem, quando o narrador Cleber Machado aproveitou a bola parada para anunciar as chamadas do Fantástico. A notícia de maior destaque era o escândalo de repercussão internacional que eclodiu no final da semana, envolvendo alguns frigoríficos com carne adulterada e pagamento de propina para fiscais do Ministério da Agricultura. À noite, o programa faria um rescaldo das denúncias. Na sequência, o comentarista Casagrande fez um desabafo extracampo: “com tantas denúncias de corrupção, até mesmo na carne que as pessoas comem, o Brasil está indo por um caminho sem volta. Não sei aonde vamos parar”.

A indignação do comentarista se juntou a milhões de manifestações que inundaram a imprensa e as mídias sociais. Junto com as notícias sérias veio uma avalanche de piadas infames, montagens grosseiras, churrasco de papelão, distorções e reproduções exageradamente aumentadas. Os prejuízos para as empresas envolvidas nas denúncias foram imediatos, com queda do valor das ações das empresas na Bolsa de Valores e a suspensão das exportações para vários países. Uma das brincadeiras que circulava pela Internet era a vingança do presunto “Luis Augusto” que fazia alusão ao comercial da Sadia que comparava a marca da empresa com outras nem tão famosas. Ambas, marcas famosas e desconhecidas, foram fortemente afetadas pelas denúncias. 

Quando a pauta versa sobre corrupção, roubalheira, fraude e propina já há uma tendência explícita. Nosso passado mais remoto e mais recente condena. Diariamente, convivemos com alguns médicos que instalam próteses desnecessárias em pacientes e alguns produtores que batizam o leite até com veneno. Temos também políticos que desviam dinheiro de instituições filantrópicas e que deixam crianças sem merenda. Existem, ainda, alguns padres que molestam crianças e juízes que vendem sentenças. No entanto, temos também uma Polícia Federal que conseguiu colocar grandes empresários corruptos na cadeia e juízes que mandaram prender figurões da República. Da mesma forma, há uma imprensa que denuncia todos esses desmandos, contando com a colaboração de um funcionário público, um auditor do Ministério da Agricultura, chamado Daniel Gouveia Teixeira, que não se calou diante de lobbys poderosos. 

No agronegócio, especificamente no mercado de carne, existem empresas sérias que cumprem rígidos padrões de higiene e segurança, aprovados por mais 150 países, know-how que deu ao Brasil a liderança do setor. Também há os inescrupulosos que fazem qualquer mistura para aumentar os lucros. A operação mostrou, inclusive, que uma mesma empresa pode ter duas posturas bem distintas entre as próprias unidades, uma ética e responsável e outra criminosa e mercantilista. Maior exportador de proteína animal do mundo, o Brasil tem mais de 5.000 unidades frigoríficas, sob a suspeita estão 21, o que representa 0,5% desse total. Também se constata grandes diferenças entre os frigoríficos envolvidos. As gravações da Polícia Federal demonstram que o Frigorífico Peccin do Paraná não pensa duas vezes antes de despachar carnes estragadas para seus consumidores. A BRF, empresa de larga tradição no mercado de proteína animal do país, resultado da fusão de duas marcas reconhecidas, Perdigão e Sadia, não pode ter sua história jogada no lixo por conta da corrupção e da fraude em algumas unidades. 

Na ânsia de fazer uma denúncia importante ao país, a comunicação da Polícia Federal na entrevista coletiva não foi suficientemente clara para separar o joio do trigo, para esclarecer quais as unidades envolvidas, o tipo de infração cometida, onde havia corrupção, pagamento de propina e processamento indevido de alimentos. Isso não desqualifica e não atenua a gravidade da denúncia que precisa ser investigada com rigor.

O agronegócio e a exportação de carne são ilhas solitárias de prosperidade na combalida economia brasileira. Nem por isso se pode acobertar as denúncias que foram levantadas, nem tampouco engrossar o coro dos que desejam destruir a imagem inteira do setor. O país também não pode vestir a carapuça da síndrome do Luiz Augusto, da marca desprestigiada, desvalorizada pela qual ninguém se interessa. Além de ser um grande “player” do agronegócio, o Brasil é um dos únicos países do mundo que está revendo seus processos políticos, jurídicos e até sanitários. A preocupação do Casagrande tem fundamento, mas, por mais doloroso que isso seja, no final dessa inspeção ficará comprovado que a carne de quem passa por esse processo não é fraca, é muito forte. Com certeza, o Brasil é um dos únicos países do mundo que está cortando a corrupção na própria carne. 

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