Interpretações da história

Interpretações da história

A derrubada intempestiva de estátuas, fenômeno que ocorre em vários países do mundo, demonstra o grau de radicalização que contamina as sociedades mundo afora, o Brasil incluído. O processo até começa de forma positiva, a reflexão crítica sobre a vida de um determinado personagem que ocupa um lugar importante na história e na paisagem urbana. Vira um aprendizado, pois a grande maioria das pessoas não sabe quem foram os personagens que emprestam seus nomes para praças, monumentos e até para a rua onde mora. A educação brasileira esvaziou a importância da história, fundamental para compreender o estágio dos dias atuais.  

A onda começou nos Estados Unidos com a derrubada de estátuas dos heróis confederados do sul do país, que na guerra da secessão (1861 a 1865) defendiam a manutenção da escravidão. Foram derrotados pelo norte mecanizado, interessado em substituir a mão de obra escrava pelas máquinas. Ao longo da história, muitas vezes, grandes interesses econômicos aparecem maquiados pelo verniz dos ideais libertários.  No Brasil, a polêmica se materializou na derrubada da estátua de Manuel Borba Gato (1649 a 1718), em Santo Amaro, na zona sul de São Paulo, apresentado na história como genocida, estuprador, caçador de indígenas e da população negra. Vários historiadores e intelectuais endossam essa visão, o que justificaria o incêndio e a derrubada sumária da estátua, pois ela representa uma afronta aos valores éticos e de civilidade.  

No entanto, a história também é pródiga em controvérsias. Em entrevista à Folha de São Paulo, o famoso historiador Eduardo Bueno, autor de 30 livros sobre a história do Brasil e que possui um canal no YouTube com um milhão de inscritos, sustenta que os vândalos queimaram a estátua errada. Conhecido como Peninha, o escritor gaúcho não contesta a violência brutal promovida pelos Bandeirantes, nos Séculos XVI e XVII, contra negros e indígenas.  O historiador sustenta que Borba Gato comungava das matanças e das caçadas, mas que não teria participado delas porque chegou noutro momento histórico. Controversas históricas à parte, uma das principais rodovias do Estado de São Paulo homenageia os bandeirantes, que na histografia oficial “desbravaram” o interior do país a partir do litoral de São Paulo. Essa visão ufanista ignora os crimes cometidos pelos bandeirantes contra índios e negros. Será que alguém cogita em por fogo ou destruir a Rodovia dos Bandeirantes? 

O caso do mais famoso presidente brasileiro de todos os tempos, Getúlio Dornelles Vargas, se torna emblemático nessa discussão. Amado por milhões que o chamavam de “pai dos pobres”, Getúlio foi odiado na mesma proporção. No seu currículo presidencial consta a ditadura do Estado Novo, o fechamento do Congresso, a perseguição implacável dos adversários e a criação de um estado policial que torturava e matava opositores. O escritor Graciliano Ramos contou essa história no livro Memórias do Cárcere. Entre as maiores barbaridades que Getúlio cometeu está a morte de Olga Benário, militante comunista que estava grávida e foi entregue aos nazistas para ser executada numa câmara de gás. Agora, seria o caso então de mudar os nomes de todas as escolas, ruas e avenidas, prédios públicos e até da cidade gaúcha que homenageia o ditador?

Os povos são soberanos para interpretar a história, remover e erguer estátuas, mas o que difere uma sociedade bárbara de uma democrática são os métodos. É possível apear do pedestal da praça Getúlio Vargas, Borba Gato e outros ícones, se a maioria assim entender. Contudo, isso precisa ser feito através de um debate público que respeite as normas e o direito ao contraditório. Sair colocando fogo e derrubando a esmo não é uma atitude racional. As decisões precisam se impor pelo convencimento, pela força dos argumentos e não pela violência das armas e das atitudes intempestivas, sob pena de reeditarmos o espírito bárbaro que acometeu alguns dos nossos “ilustres” antepassados. 

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