Mundo sem filtro

Mundo sem filtro

Quando nada de excepcional acontece, um dia sempre se parece com o outro, mas nesses tempos imprevisíveis as surpresas desagradáveis e inusitadas estão atropelando. Se já não bastassem as confusões e as discórdias provocadas por personagens conhecidos, eis que de repente uma ilustre personalidade desconhecida do mundo da internet rompe o anonimato e ressurge das profundezas do mundo digital, defendendo a legalização de um partido nazista. A primeira reação é pensar que se trata de notícia falsa, sem procedência ou cabimento, pois a humanidade jamais esquecerá das atrocidades cometidas contra 6 milhões de judeus mortos por nazistas na Segunda Guerra Mundial. 

Os mais antigos até podem pensar que Monark é uma marca de bicicleta, concorrente da Caloi, mas nesses tempos modernos Monark também é um podcaster, alguém que por conta e risco, sem formação, sai disseminando conteúdos pela podosfera, o universo por onde transitam os podcasts. De vez em quando, a liberdade de expressão cobra um preço alto. Quem perdeu tempo, ouviu e viu o podcast “Flow”, fluxo na tradução para o português, encontrou um grupo de comunicadores despreparados jogando conversa fora como se estivessem na mesa de um bar. Nesse ambiente descontraído, as pessoas são livres para dar asas ao pensamento sem compromisso com a veracidade das informações. Se a filosofia de boteco não faz mal a ninguém e morre ali mesmo, programas do quilate do “Flow” proliferam na internet, tornando gamers, nerds e youtubers, outrora anônimos, em celebridades instantâneas, catapultados por grandes marcas patrocinadoras que sempre estão de olho nos milhares de “seguidores”. Perigo na área. Quando gente sem noção encontra polpudos financiamentos para as aventuras filosóficas o estrago se torna imensurável. 

Assim, atos surpreendentes vão aparecendo no noticiário. Circulam nas redes sociais e na internet, com quantidade crescente, vídeos escabrosos, racistas, preconceituosos, xenófobos, misóginos e até nazistas, caso do “famoso” podcaster Monark. Esse admirável mundo sem filtro funciona sem roteiro, na base do improviso e do pensou, gravou, filmou e publicou. “Se deu ruim” ou foi para o endereço errado corre lá para apagar e pedir desculpas. A título de comparação, no universo do jornalismo, por exemplo, o conteúdo trilha um caminho com muitas etapas. Alguém tem uma ideia de assunto relevante (pauta), precisa minimamente pesquisar o tema (inicio da investigação) e necessita ouvir pessoas que estejam envolvidas com aquele tema (entrevistar fontes). Depois desse processo ainda precisa submeter o conteúdo elaborado ao crivo de outra pessoa. Se não observar com rigor esse processo perderá algo precioso chamado credibilidade. No jornalismo, a versão não pode se sobrepor ao fato. Na raiz da crise atual, brasileira e mundial, estão pessoas que querem impor a sua visão de mundo sem oposição.  

“Esse é o nosso mundo, o que é demais nunca é o bastante”, já dizia Renata Russo, o profeta deste caldeirão informacional. Se em anos passados, havia lacunas, faltas e espaços, no atual, a oferta transbordou para abundância exagerada e sem limites. Mesmo que não faça nenhum esforço nesse sentido, qualquer cidadão comum do século XXI recebe um bombardeio e uma avalanche de informações que tornam angustiantes até mesmo as escolhas mais elementares. Um tempo precioso se perde com notificações desnecessárias, chamadas inconvenientes e invasão de privacidade. No meio dessa desordem informativa, a sociedade perde o senso de coletividade e assiste à ascensão da individualidade desmedida. 

O Brasil, outrora cantado em verso e prosa como pacato e acolhedor, assiste a um congolês ser morto a pauladas, índios serem assassinados em nome do “desenvolvimento” e cidadãos da periferia, negros e pobres na sua maioria, ficarem na linha de tiro entre a polícia e traficantes. São cenas bizarras dessa overdose digital em que os reiterados discursos de ódio e as mentiras constroem uma narrativa distorcida que vai colecionando adeptos entre os distraídos ou mal informados. Nessa estratégia cheia de segundas intenções, vale tudo para minar as instâncias coletivas, criar um falso discurso alternativo para dar o golpe lá na frente, plantando as sementes de uma sociedade autoritária, centrada no personalismo do salvador. Até aqui, o Brasil se manteve distante das contaminações da xenofobia, do nacionalismo sem limite e da segregação, mas sucessivos acontecimentos que beiram à barbárie demonstram que comportamentos mais violentos estão se tornando rotineiros.

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