A nostalgia do pop

A nostalgia do pop

As quatro apresentações do U2 em São Paulo mostraram que apesar da passagem do tempo, a longeva banda irlandesa continua com público fiel e ainda consegue atrair novos fãs. O Morumbi lotado nas quatro noites recebeu uma plateia de causar inveja aos clássicos do futebol que, ultimamente, andam com públicos mingados. Nas longas horas de espera pelo show, aflora uma verdadeira devoção. Essa cumplicidade, capaz de reunir milhares de pessoas, já dura quatro décadas e ganha voz no coro que vai ecoando pelos cantos do estádio em torno dos novos e dos antigos sucessos.

A simbiose dos irlandeses com o público também rompe a barreira do idioma e se faz entender pela linguagem universal da música. Em quase todas as canções, como se fosse uma mágica fórmula musical, o U2 faz brotar uma melodia envolvente, ritmada pela bateria e guiada por sons sincopados do baixo e da guitarra. Acelera e para, começa num tom suave, mas a frequência sobe aos poucos até que a excitação e a calmaria se misturem. A música culmina com um solo meio épico do vocalista que contagia o público na busca de uma sinergia. Eis aí a síntese da proposta do U2, uma abreviatura de “you too”, ou “você também”. Foi assim na conhecida “I Still Haven’t Found What I’m Looking For” em que a plateia cantou sozinha mais da metade da música.

Para ver a banda liderada pelo carismático Bono Vox vem gente de Manaus, do Nordeste, do Sul e de todas as regiões do país. Faça chuva ou faça sol, esses fãs sabem que a apresentação do U2 se trata de um acontecimento histórico, algo que ocorre de tempos em tempos, e que não se pode perder, mesmo que o ingresso custe caro ou que o copo de cerveja seja vendido a R$ 12,00 e o cachorro-quente a R$ 15,00.

A tradição não se verga fácil. Para arrepiar logo de cara, a banda abre a viagem pelo pop rock com o clássico “Sunday, bloody Sunday”, uma música com forte apelo político que relembra o domingo sangrento com a guitarra enrijecida e batida militarista. Quatro anos antes do U2 começar, tropas britânicas mataram manifestantes dos direitos civis na Irlanda no episódio que ficou conhecido como o domingo sangrento. À medida que o show avança, o líder da banda revela simpatia e humildade. Além dos agradecimentos em português, apontando para o céu e com as luzes dos celulares homenagens a Cazuza e a Renato Russo, duas estrelas brilhantes do pop rock nacional. Antes de passar o som, mesmo com o sol rachando, Bono parou na fila para as selfies com os fãs.

Aos 58, anos, o vocalista é um artista completo que usa o peso da sua influência internacional para defender causas sociais. Mesmo quando revisita o emblemático disco “The Joshua Tree”, de 1987, que denomina a turnê, cumprindo a velha tradição revolucionária do rock, bate de frente com Donald Trump, denuncia a devastação ambiental e o desrespeito aos direitos humanos. Nas letras e nos discursos, a música e a política andam juntas. Em “Beautiful day”, Bono espera que um belo dia será aquele em que as mães não passarão o vírus HIV para seus filhos, será aquele em que meninas terão o mesmo direito à escola do que seus irmãos.

Por sinal, na turnê assistida por 2,5 milhões de pessoas, as mulheres da plateia, do Brasil e do mundo receberam uma homenagem especial da banda. Enquanto Bono cantava, no megatelão de 60 metros de largura por 14 metros de altura, para o qual podem ser atribuídos todos os superlativos digitais, desfilavam textos e fotos sobre mulheres influentes da história. Madre Tereza de Calcutá, Frida Khalo e Indira Ghandi foram algumas das personalidades homenageadas. Da Argentina, o cantor reverenciou as mães da Praça de Maio e a cantora Mercedes Sosa. Do Brasil, lembrou da bióloga Bertha Luz, da artista Tarsila do Amaral e de Maria da Penha. Nas costas da camiseta do baterista Larry Mullen Jr estava escrito “Censura Nunca Mais”.

Muita gente considera o passado, a nostalgia de um tempo decorrido como algo meio fora de moda que impede o mundo de andar para frente. Alguém já disse que quando se trata de música, no entanto, isso não machuca, no máximo gera um sorriso de melancólica aceitação e alguns momentos de uma satisfação inesquecível. 

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