O arqueiro da República

O arqueiro da República

Acusar nunca foi uma tarefa simpática, ainda mais quando os alvos das ações são pessoas poderosas, totalmente desacostumadas a serem processadas. Isso explica a reação orquestrada do poder que ocorreu, nos últimos dias, contra o ex-procurador, Rodrigo Janot, que comandou a Procuradoria Geral da República (PGR) nos últimos quatro anos. Os figurões da República, entre eles o presidente Michel Temer, não estão acostumados a frequentar o banco dos réus. Apesar das reações raivosas, Janot escreveu um capítulo importante da história política brasileira. Processou indistintamente presidente, ex-presidentes, políticos e autoridades. Pediu o cancelamento da delação da JBS e a prisão de um ex-assessor.

Sua atuação fez com que a sociedade brasileira entendesse, pela primeira vez, a função do Ministério Público que ganhou poder a partir da Constituição de 1988. O trabalho efetivo à frente da Procuradoria permitiu que a opinião pública percebesse que o Judiciário não configura um poder único, pois há uma diferença grande entre a função do Ministério Público e a da Magistratura. À promotoria cabe apontar o dedo da acusação, fazer a defesa intransigente do interesse público para assegurar a republicana igualdade dos direitos, sem privilégios, principalmente no que tange ao cumprimento da lei. A magistratura fica com o julgamento.

No auge dos embates, o ex-procurador cunhou, em um congresso de jornalistas, a expressão pela qual será lembrado: “enquanto houver bambu, vai ter flechas”. Nos últimos dias do mandato, Janot fez um “sprint” para esvaziar a gaveta dos processos. Pela atuação discreta, os antecessores caíram no limbo do esquecimento. Quem lembra do Cláudio Lemos Fonteles (2003 a 2005), de Antonio Fernando de Souza (2005 a 2009) ou de Roberto Gurgel (2011 a 2013)? Há quem jure de pé juntos que a aura de honestidade que até hoje paira sobre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) em muito se deve a Geraldo Brindeiro, conhecido como o “engavetador geral da República”. O período em que Brindeiro esteve à frente desta mesma Procuradoria (1995 a 2003) coincidiu com os dois mandatos de FHC (1995 a 2002). Nesse período, Geraldo recebeu 626 inquéritos criminais, engavetou 242, arquivou 207 e só aceitou 60.

Os números do odiado Janot são bem diferentes. Segundo balanço divulgado pela PGR, de setembro de 2013 a agosto de 2017, o gabinete do procurador-geral recebeu 18.954 processos judiciais e deu saída em 18.406 (97%). Só em agosto deste ano, houve 622 manifestações, sendo 212 do grupo de trabalho da Lava Jato, 189 da assessoria jurídica criminal, 88 da assessoria jurídica constitucional, 61 da assessoria jurídica cível, 36 de processos trabalhistas, 25 da assessoria jurídica de tutela coletiva e 11 da assessoria Jurídica de Matéria Administrativa. A instituição informou que, no final de agosto, o gabinete apresentava um acervo de 595 processos judiciais remanescentes, uma redução de mais de 70%, comparado a setembro de 2013, quando tomou posse. À época estavam registrados 2.330 autos judiciais. Entre agosto de 2015 e setembro de 2017, o ex-procurador apresentou 34 denúncias, uma média de 1,4 por mês, mas segundo Janot ainda tem um “quadrilhão” solto por aí.

Por esses números, a chiadeira contra sua atuação se justifica. Nunca na história desta República, a Procuradoria teve esse desempenho. Pobre do país que precisa de salvadores da pátria. Sempre há o perigo de uma grande decepção. As rusgas decorrentes da vaidade também parecem ser inerentes à boa parte dos órgãos que compõem o judiciário, mas isso não retira o substrato do balanço final da passagem do mineiro de Belo Horizonte, nomeado pela ex-presidente Dilma Rousseff, que deixou o cargo no dia em que completou 61 anos.

Muito se especula sobre Raquel Dodge, a primeira mulher a ocupar o cargo de procuradora. Formada em direito pela Universidade de Brasília, com mestrado pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, a procuradora de 56 anos está há 30 no Ministério Público. Com atuação também na área criminal, coordenou a Operação Caixa de Pandora, que levou à prisão, pela primeira vez, um governador no exercício do mandato, o do Distrito Federal, José Roberto Arruda, em 2010, flagrado recebendo propina. Dizem que ela não gosta de publicidade em torno dos seus atos e sempre que pode evita a imprensa. A nova procuradora já processou um esquadrão da morte e participou da operação que prendeu o ex-ministro Geddel Vieira Lima. As primeiras impressões projetam uma mulher dura, que não teme cumprir o seu dever de processar quem pratica atos ilícitos. Que assim seja, pois o cargo de Procurador Geral da República exige o destemor como pré-requisito. Raquel Dodge terá cumprido bem a sua missão constitucional se, daqui a algum tempo, a opinião pública brasileira, que tanto clama por um combate à corrupção, não sentir um pingo de saudades das flechas certeiras do Janot. 

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