O vocabulário da inclusão

O vocabulário da inclusão

Durante séculos, a gramática foi determinada por uma regra machista que nunca foi questionada. O gênero masculino sempre se impõe mesmo que a palavra terminada em “o” seja minoria na lista de substantivos citados. Basta olhar como fica a concordância de palavras de gêneros distintos em uma frase comum. A cama, a mesa, a estante e o livro foram comercializados. Só por causa do livro, o verbo ficou no masculino. As femininas  mesa, estante e cama não foram levadas em conta. A ascensão da linguagem neutra não é uma rebelião gramatical, mas surgiu em função da reação das pessoas que não se sentem representadas nem pelo masculino e nem pelo feminino. Para quem se identifica com um ou outro gênero tudo permanece igual. Uma mudança de comportamento assumida principalmente pelos jovens e por grupos minoritários que buscam o reconhecimento de suas identidades. Essa forma de expressão ganhou força entre a população LGBTQIA+ e aos poucos avançou no debate.
 
Criou-se assim um processo natural de incorporação de novas expressões. À medida que a bolha de um pequeno grupo se rompe e se estende a outros segmentos, o léxico oficial tende a incorporar os neologismos. Foi o que ocorreu com as expressões da internet, incluindo-se aí o deletar, o printar e o zapear. A mais recente delas é o flotar para se referir a algo que flutua. Nas brincadeiras do futebol se diz que o sonho do Palmeiras de ser campeão mundial não “flotou” mais uma vez. Essa nova versão da linguagem não binária adota expressões que não especificam o masculino (ele) ou o feminino (ela), optando pelos indefinidos. Assim surgem expressões “amigue”, “irmane”, “filhe” e “ile”. No lugar do “o” e do “a” entram o “X”, uma arroba ou “e”. 

Aos poucos, a linguagem não binária começa a ser incorporada pela sociedade nos ambientes acadêmicos, na propaganda, pelos políticos preocupados em não desagradar eleitores e pelas empresas que precisam ficar atentas ao processo de inclusão social.  A língua evolui para acompanhar as transformações da sociedade, mas essa mudança que está ocorrendo agora é apontada pelos estudiosos como a de maior impacto gramatical. A reforma ortográfica de 2016 serviu para unificar a grafia entre os países de língua portuguesa. Toda mudança provoca polêmicas e contestações. Alguns especialistas consideram essas alterações um excesso que não vai enriquecer o idioma. O tema ganhou tanta importância que chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), que terá de decidir se a linguagem não binária será a oficial, principalmente para concursos públicos e o ensino escolar. Embora comporte gírias, expressões regionais e o “internetês”, a língua culta é a que fica registrada e documentada nos dicionários.  A mesma discussão ocorre em outros países do mundo, com destaque para a França, vanguarda das manifestações por liberdade e por igualdade. 

Além do STF, a nova grafia já está muito presente nas redes sociais onde o uso informal não depende de nenhum tipo de autorização ou consentimento. Nos processos de transformação, artistas e celebridades saem na frente e dão o tom da mudança que se apresenta como definitiva e irreversível. A história mostra que vingam as mudanças que caem no gosto popular. Desta vez, o contexto é diferente, pois não se trata de uma mudança gramatical decorrente da evolução cronológica. Os ventos da diversidade estão soprando forte em todas as direções. As mudanças gramaticais se tornam mais um campo de batalha para descrever com palavras os contornos de um novo mundo que todo dia ganha forma de um jeito novo e desafiador. 

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