Sequestro do tempo

Sequestro do tempo

A cada minuto, a internet apresenta uma novidade, um aplicativo, uma fermenta ou serviço que facilita a vida, mas, ao mesmo tempo, cria uma dependência viciante. Não se pode cair no extremo de dizer que a era digital trará impactos horripilantes, arruinando cérebros ou atrofiando o comportamento de gerações, principalmente das crianças e de uma parte de adultos que fazem um uso compulsivo dos móbiles. No entanto, alguns riscos são cada vez mais visíveis.

Mesmo quando você procura a quietude, o teu próprio celular quebra o silêncio, invade o espaço e emite um sinal, informando que há uma mensagem que você não esperava e nem sabia que receberia. No WhatsApp, as duas da madrugada ainda tem gente mandando vídeo e às 5h da manhã tem colega de grupo dando aquele famoso bom dia virtual. 

Não se pode observar essa mudança radical no comportamento das pessoas como se um catastrofismo digital esteja prestes a acontecer, mas, também, não dá para negar que a interminável onda de likes, selfies, gifts, games e compartilhamentos está criando uma ansiedade coletiva. As pessoas se sentem lerdas e culpadas se demoram um pouco para ver uma mensagem. Já tem amizade que depende da disponibilidade on-line. A internet virou o maior negócio do mundo, um campo cheio de artimanhas para seduzir internautas. Estas táticas se parecem com aquela propaganda do biscoito em que era impossível comer um só. Preste atenção e faça o teste. Muitas vezes, você liga o computador com um objetivo, mas no caminho aparecem tantas informações, oportunidades e novos assuntos de interesse que você se distrai, vê uma porção de assuntos fora da sua pauta inicial. Depois fica cansado e sai da rede sem alcançar o objetivo. Nessa peregrinação por sites e por mensagens acaba lendo, sem querer, as 10 coisas que não se pode fazer dentro de um avião. Isso ocorreu quando esse texto estava sendo elaborado.  

Pouca gente percebe a desigualdade do jogo. Nas grandes empresas desse setor, especialistas altamente preparados desenvolvem mecanismos sofisticados para sequestrar o tempo dos usuários. A pesquisa de uma agência internacional “We are social” revela que a internet predomina na vida dos brasileiros que estão entre os povos mais conectados do mundo. O país possui 276 milhões de conexões via celular, o que comprova que já há mais celulares do que habitantes, (estimados em 204 milhões). De acordo com o levantamento, o brasileiro gasta, por dia, 5 horas e 26 minutos na internet através do computador ou do tablet. Nessa conta, ainda se somam mais quatro horas gastas no celular. Hoje, cerca de 47% da população ou 95 milhões de pessoas possuem contas nas redes sociais. O Facebook e o WhatsApp são as plataformas preferidas. Como não dá para aumentar as horas do dia, as redes sociais tomam o tempo do lazer, dos familiares, dos amigos e do trabalho.

Embora essas plataformas não sejam inimigas, não se pode perder o controle do tempo. Essa disputa pela atenção existe desde que o mundo surgiu, mas, agora, há um exército de engenheiros e designers que trabalham para reforçar o vínculo entre os usuários e as redes. O algoritmo do Facebook encontra fácil um vídeo ou um meme engraçado para que o internauta se sinta compelido a clicar nele. Os especialistas alertam que a indústria digital gostaria que as pessoas dormissem pouco para permanecerem mais tempo conectadas. Como acontece com tantos outros vícios, jogos de azar, bebidas e drogas, a maioria das pessoas tem a ilusão de que controla o uso da tecnologia.

Essa desenvolvida engenharia digital deixa transparecer a falsa sensação de que o usuário está no comando, em busca de informação ou entretenimento. A indústria digital tem outro objetivo muito diferente e bem definido. Quer tomar o tempo disponível para ganhar dinheiro. Faz isso induzindo as curtidas, os comentários e os compartilhamentos. Afinal de contas, quem não quer saber qual foi a repercussão do seu post? Quando o seu celular emite algum aviso, quem está chamando é algum ser humano ou a máquina querendo capturar a sua atenção?

A escritora Lya Luft vai completar 79 anos, portanto, vem de uma geração que não foi contaminada pela onipresença da internet. A frase “o tempo é um rio que corre” virou o título de um livro recente. Nele, a escritora se concentra nos temas que são a sua especialidade: a passagem da vida, o amadurecimento, as águas mansas e as marés altas. Para a escritora, a suposta falta de tempo resulta de uma cultura vinculada à futilidade. Na visão de Lya Luft, para que vida não se torne um atropelo, o tempo de cada um precisa escorrer como as águas de um rio manso, certamente sem tanta pressa e sem tanta conexão. 

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