Aura e o grito do lençol

Aura e o grito do lençol

      A aura fria da madrugada que passeia  pela rua estreita penetra  suavemente pela fresta da janela entreaberta da casa pobre, do bairro pobre, da cidade pequena.      

      Época de crise, desemprego, de espertalhões comandando o país, tudo é  caro principalmente para um bolso roto como o dele.  Dificuldades de todos os tipos!  Exceção feita à  brisa que visita  todas as  casas sem nada cobrar.  Ele a recebe com carinho,  praticamente sozinho por que sua mulher dorme ao seu lado sonhando com anjos ou demônios!  Ele nunca tem certeza.   Vira o corpo cansado   de um lado para outro, na cama,  enquanto sua alma acesa não se prende à acomodação do corpo àquela  hora da madrugada.  O lençol curto  já mostra sinais de ruptura nas extremidades, sinal do trabalho das mãos e das unhas dos pés que o puxam para cima e para baixo na tentativa de cercar o frio!  O lençol é vítima  da conhecida síndrome do lençol curto  que descobre os pés quando cobre  os ombros   e vice-versa.

     A mulher continua dormindo o sono dos justos ou dos injustos como ele costuma pensar desde um dia em que a viu conversando com o vizinho bonitão. Como ele gostaria de penetrar naquele sono-sonho que sempre lhe pareceu inviolável, ao qual nunca teve acesso.  Ouvira falar em Freud  e as interpretações dos sonhos, mas nunca teve dinheiro nem cultura para chegar perto dos livros dele.

   Olha para a mulher!   Como  dorme serenamente! Por que ela nunca tem pesadelos? Como ele gostaria que ela tivesse um pesadelo e lhe revelasse parte de suas dúvidas! Ela dorme...  Ele continua de olhos abertos com um olho no gato e outro na sardinha! Não! Nada de gato e sardinha! Pura imaginação!  Seria ele o gato e ela a sardinha?  Olha para o despertador: 4 horas da madrugada!  Um cachorro vadio late lá fora! De frio, de fome, de falta de companhia?  A brisa continua a passar pela fresta da janela! Sente frio nos pés!  Com a unha do halux direito  empurra o lençol. Ouve um grito imaginário de dor! O barulho  real de tecido rasgado fê-lo parar no meio do caminho. O lençol velho havia reclamado da agressão! Rasgou-se mais um pouco!  Ele que  pretendia  continuar cobrindo os pés e os ombros  de seu dono, trabalhando em turnos de minutos ou de horas para contentar as duas partes, foi mais uma vez agredido!    

   O nosso personagem olha novamente para a mulher que dorme impunemente! Sente algo  de ciúme e de revolta! Como pode dormir tão desligada do mundo? Gosta  dela! Lembra-se das palavras do casamento: “unidos para sempre na saúde e na doença”. Por longos 40 anos assim pensara! Não poderia fazer nada! Sente uma dor na consciência e outra no coração.  Estira-se na cama e puxa o lençol para cobrir o rosto! Ouve  o  grito do lençol rasgado que reclama daquele halux bruto e inconsequente que, pela última vez, quis segurá-lo sobre os pés”! 

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