bola de pano

bola de pano

 

     A vida é um eterno refazer...  Desde criança vivemos nesse eterno refazer... Às vezes, em plena madrugada sinto-me saudoso da minha distante infância e revejo os jogos de futebol com as esfarrapadas bolas feitas de meias velhas e fragmentos de panos de sobras de costuras feitas pela minha saudosa mãe!  Quanto trabalho dava costurar aquelas meias velhas cheias de pedaços de panos que sempre teimavam em sair por algum buraco novo que aparecia! Quanto trabalho dava fazer a futura bola ficar redonda! Ela queria ficar de todas as formas, menos redonda! Como a meninada que fazia parte do jogo, a apertava entre as frágeis mãos para que ela fosse tomando o aspecto de bola! Como era batida na parede da casa e na calçada de cimento para que fosse adquirindo a forma por nós desejada! Muitas vezes pegamos pedaços de madeira para surrá-la! Com isso, tínhamos a esperança de que por medo ou pela ação das pancadas, ela iria tomando jeito!  A cada melhora o sorriso brotava em nossa face, como se tivéssemos descoberto a penicilina. Nós nem sabíamos o que era penicilina, nem as agruras do mundo! No final de tantos trancos e de tantos pontos, a meia grávida de farrapos ia tomando o aspecto de bola! Nossos pés descalços, de unhas resistentes e cheias de terra, acabavam por lhe dar o aspecto  arredondado que tanto queríamos!  Ao final do jogo, cada moleque queria levar a bola para casa! Cada um tinha certeza de que na casa dele ela ficaria mais bem guardada e não correria risco de desaparecer! A disputa  pela guarda era feita no par ou ímpar! Todos respeitavam o resultado do jogo! Nunca vi ninguém falar em recorrer à Justiça Esportiva ou à Justiça Comum! Tenho a impressão de que naquela época não se precisava dessas justiças!  As caras feias resultantes das caneladas e dos chutes, desapareciam rapidamente quando a bola era passada para eles e eles tinham que mostrar serviço!  A desconfiança somente aparecia quando a bola desaparecia por algum momento, quando um dos irmãozinhos menores a pegava e saía jogando com ela pelo quintal e a esquecia, ou quando uma das mães, não tolerando o cheiro do chulé debaixo da cama, a atirava pela janela para o fundo do quintal! Essa era a hora mais difícil do pequeno grupo que invadia o quintal, armado de visão de lince e de esperteza de raposa! Dedos eram cruzados em figa! Acho que Deus  era lembrado somente nessa hora, depois que saímos da aula de catecismo! Acho que ele nunca se importou com esse esquecimento, pois não permitiu que  lesão séria acontecesse  durante os nossos jogos de infância! Quando a bola era encontrada, os sorrisos voltavam ao rosto, os dedos desmanchavam as figas e os pés e os olhares presos pela tensão voltavam a ser liberados! Que felicidade! Que alegria! Os moleques corriam um em direção  ao outro para se abraçarem! Como era bonita aquela confraternização onde somente a amizade valia a pena!  Tudo se resumia em um largo sorriso e em um abraço apertado!

      A vida seguiu! As meias velhas, os pedaços de panos, as agulhas, os barbantes  e a bola feita de meia  ficaram  para trás! Estudos, vestibulares, faculdades, trabalhos em bancos, em lojas, em oficinas e em outros lugares! Cada moleque seguiu o seu destino!   Havia destino naquela época? Engraçado! Parece que naquela época a única coisa que tinha destino era a bola de pano! Lembro-me que quando a bola ia ficando velha, começava a perder as tripas (pedaços de pano que saíam de dentro dela), minha mãe dizia que o destino dela seria o lixo!

      Nunca pensei seriamente na palavra destino enquanto  criança, porque logo que a bola começava a destripar-se, arrumávamos uma meia nova, isto é, velha, para fazermos um bola nova!

Deu para entender? Será  que não?  A não ser que você teve em sua infância uma bola de pano como eu e meus amigos.

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