Ele queria ser médico

Ele queria ser médico

     Ele nasceu em uma cidade pequena do interior. Chamava-se Marcelo.  Que alegria sentia em seu coração ao ver a ambulância entrar no seu bairro fazendo aquele  barulho estridente  para chamar a atenção do povo e espantar as crianças e os cachorros da rua, para não serem atropelados! E como tinha crianças e cachorros na rua em que morava!  Apesar de pobre sentia-se feliz porque tinha quatro irmãos,  muitos amigos, muitos colegas de escola e o lulu, o seu cachorro de estimação que tal como ele, gostava muito de ficar na rua. Ele tinha um ídolo em sua vida: Dr. João Conrado, o médico que trabalhava no Postinho de Saúde do bairro pobre onde morava!  Como ele admirava o dr. João Conrado, quando ele saía da ambulância,  vestido de branco, com a pasta preta na mão, o aparelho de examinar o peito das pessoas e  aquele  jeitão  de Deus! Ele também queria ser médico! Queria curar as pessoas! Queria ser quase Deus, como o Dr. João Conrado! Dr Conrado foi seu médico desde que foi trabalhar no Postinho de Saúde!! Que sorte tivera ao ser assistido por um médico tão dedicado! Não era ele somente que era bem atendido! O bairro inteiro idolatrava Dr. Conrado!

     - Dr. Conrado é um santo, costumava dizer a mãe aos seus cinco filhos. Se não fosse ele, algum de vocês já teria morrido! Ele não achava que o médico fosse santo! Ele achava que o médico tinha um jeitão de Deus!  Para ele, Dr. Conrado podia tudo, era um ídolo que deveria ser imitado! Ele gostava do porte físico, da roupa branca, do sorriso aberto e do cumprimento mão a mão, quando entrava na casa das pessoas! Além disso, tinha a mania de passar a mão na cabeça da meninada! Sempre vira Dr. Conrado alegre! Nunca o vira de mau humor, apesar dos seus 50 anos de idade e de mais de 25 anos de médico!  Ah! Como gostaria em algum dia de sua vida, ser um médico como o Dr. Conrado!  Lembrou-se que certo dia a mãe teve de chamar o médico de urgência porque três dos cinco irmãos estavam doentes! Todos estavam com diarréia, com febre, desidratados e desnutridos!  Após examinar um por um, Dr. Conrado disse que todos precisavam tomar soro. Foi até a ambulância com o enfermeiro e trouxe três frascos de soro. Faria o tratamento ali mesmo porque o Postinho tinha apenas três leitos e já havia 5 doentes tomando soro!  Foi um trabalho intenso pegar  a veia de cada um dos irmãos, todos magricelas, desnutridos e desidratados. Dr. Conrado teve de ajudar o enfermeiro na luta cruel de pegar as veias dos meninos!

   Instalados os soros, sentou-se em uma velha cadeira que estava no canto do quarto e estirou as pernas. Aguardaria alguns minutos para ver se nenhuma das crianças perderia a veia!  Tudo correu bem! Depois de vinte minutos, Dr. Conrado  passou as mãos pela cabeleira abundante, passou-as pela face, como se quisesse espantar ou esconder o cansaço, respirou fundo, levantou-se e disse para a mãe das crianças:

   - A senhora sabe retirar as agulhas, não sabe? Vou deixar  alguns chumaços de algodão embebidos em álcool para a senhora apertar o local da agulha quando a retirá-la.

   - Tudo bem, disse dona Mercedes. Já fiz isso outras vezes! 

   Mercedes abaixou-se e beijou as mãos do médico,

   -Gostaria de lhe oferecer um bom café, mas estou “desprevenida”, o pó  acabou pela manhã e não pude sair para comprá-lo!

   - Entendo perfeitamente, dona Mercedes, não precisa  se preocupar com café, estou bem. Além disso, tenho uma pequena gastrite que me impede de tomar café. Tomei tanto café para espantar o sono nos meus plantões que acabei por ganhar a gastrite.

   -Tenho chá de erva-doce, disse dona Mercedes!  Vou fazer duas xícaras para vocês.

  Dona Mercedes saiu correndo para a cozinha! Que satisfação poder oferecer alguma coisa ao médico e ao enfermeiro.

   O chá veio fumegante. Dr. Conrado esperou por alguns minutos e começou a tomar o chá! Não havia açúcar no chá, mas ele não se deu por achado! O enfermeiro seguiu o exemplo do médico!

   - Ainda bem que a senhora adivinhou que somos diabéticos, disse Dr. Conrado, sorrindo.

   - Mil perdões, doutor, o açúcar também acabou. Como choveu o dia todo, não pude sair para comprá-lo!

   - É verdade! Não há nenhum problema, senhora Mercedes! Fique tranquila!

Doutor Conrado não pensou na chuva, nem no argumento  daquela pobre mulher! Ele pensou na pobreza que dominava aquele ambiente. Certamente não lhe faltava apenas o café e o açúcar. Arroz, feijão, sal, óleo, também deveriam estar faltando! Apesar disso, ainda teve um momento de descontração e lhe disse:

  Chá de erva-doce não precisa de açúcar, a erva não é doce?

O pensamento de dona Mercedes entendeu a mensagem e pensou consigo: “esse médico é verdadeiramente um santo” .

  Dr. Conrado despediu-se.  Marcelo, o menino mais velho  que queria ser médico agarrou  uma das mãos do médico e saiu com ele da casa pobre em direção à ambulância. Dr. Conrado, que sabia da intenção de Marcelo, colocou o estetoscópio do pescoço dele e de mãos dadas com ele foi para a ambulância. Antes de entrar colocou-o no lugar onde costumava viajar e disse-lhe: “ um dia você estará aqui neste lugar”.  Marcelo sorriu! Dona Mercedes, que os acompanhara, não resistiu à emoção, correu para o quarto  para enxugar as lágrimas que lhe escorriam copiosamente pela face! Ela  sabia que o sonho de Marcelo nunca  se realizaria!

   A ambulância partiu. Depois de uma hora um carro do supermercado parou à frente da casa de dona Mercedes. Várias caixas com alimentos foram descarregadas.

  - Presente do Dr. Conrado, disse o entregador.

  Mais uma vez dona Mercedes teve de correr para o quarto, mais uma vez teve de conter suas lágrimas! Mais uma vez acreditou na santidade do Dr. Conrado.

   O tempo passou. Dr Conrado, sempre que podia, ajudava a família. Marcelo continuou estudando. Quando conseguiu um emprego passou a estudar à noite e a trabalhar durante o dia.  Certo dia mudou para São Paulo e continuou a estudar. Ele continuava com o sonho de   ser médico!  Quando vinha ver a mãe e os irmãos, nunca deixava de visitar o grande amigo Dr. Conrado. Ficou triste quando ficou sabendo que Dr. Conrado havia aposentado, mas contentíssimo porque acabara de ingressar na faculdade de Medicina em São Paulo e havia ganhado uma bolsa para poder estudar sem trabalhar. Seis anos depois Marcelo recebeu o tão sonhado diploma de médico! A luta fora intensa, mas o resultado final foi o melhor possível.

   Com o diploma nas mãos voltou para a sua cidade natal. Ao chegar à sua cidade foi visitar Dr. Conrado!  Com  orgulho abraçou o velho amigo, mestre, auxiliar financeiro da família! Com orgulho recebeu o abraço do agora colega Dr. Conrado! Uma semana depois estava trabalhando no posto de saúde, lugar antes ocupado por Dr. Conrado! Com que satisfação vestiu o avental branco e pela primeira vez entrou na ambulância para atender um paciente!

Trabalhou no Postinho durante alguns anos, sempre tentando imitar o antigo e  amigo médico!

Certo dia foi avisado de que Dr. Conrado teve um mal súbito e estava acamado. Ele estava com oitenta anos e bastante alquebrado. Ao ser avisado, Marcelo, agora Dr. Marcelo, correu para a casa do Dr. Conrado. Entrou no quarto onde o velho amigo estava estendido sobre a cama. Correu para ele e ajoelhou-se ao lado da cama! Não pôde falar!  As palavras enroscaram-lhe na garganta e os olhos encheram-se de lágrimas!  O jovem médico abaixou a cabeça em direção ao peito do velho médico!

     Dr. Conrado entreabriu os olhos cansados e passou a mão sobre a cabeça de Marcelo, como tantas vezes fizera com ele e com seus irmãos, quando eram pequenos! Marcelo levantou a cabeça e olhou para o colega! Os olhos do amigo marejaram, não conseguiu sorrir, nem  falar!  A mão que estava sobre a cabeça de Marcelo caiu de lado. Foi a última vez que Marcelo sentiu a mão de Dr. Conrado passar  sobre a sua cabeça! Foi a primeira vez que Marcelo  viu Dr.  Conrado chorar ...

  

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