
Certa noite...
Certa noite sente-se sozinho de corpo e alma! Olha para o lado do leito e não vê ninguém! Puxa! Onde está aquele anjo da guarda, aquela mulher maravilhosa que o acompanha há vinte anos, que lhe faz tantas carícias e afagos e lhe da tantos beijos? Onde está aquela deusa de mãos cálidas que tantas vezes lhe aqueceram o peito congelado por desilusões e desesperos, que lhe tiraram a febre do calor gerado pelos pequenos e grandes tropeços na estrada real da vida e das ilusões! Onde está aquele sorriso que tantas vezes veio apagar-lhe as tristezas dos dias de amargura? Onde está aquele olhar terno e compreensivo que tantas vezes o retirou da dúvida e o encaminhou para a estrada da certeza e do bom censo? Onde estão aquelas mãos firmes que nunca o deixaram escorregar pelas ladeiras do desespero e da descrença?
Levantou-se! A sede da ausência queimava-lhe a garganta e a alma ressequida que alquebrada pelos infortúnios da vida estava prestes a se tornar cinza e a voar com o vento que poderia aparecer!
O velho relógio da sala assinalava três horas da madrugada e a água fria do pote da cozinha que o acompanhava nos últimos 30 anos, passava com dificuldade pela garganta estreitada pela angustia e pela solidão!
Conversou alguns minutos com o pote e com algumas louças da cozinha, revendo seus antigos tempos de criança quando ficou sabendo pelo antigo médico de família que a melhor ingestão de água era a da madrugada porque, nesse horário encontrava poucos empecilhos que a impediam de lavar todo o organismo!
Naquela madrugada, entretanto, a água parecia ter-se congelado demais e se transformado em granizo que lhe machucava a garganta ao degluti-la, ao invés de escorregar suave e confiante provocando o glug-glug da felicidade do homem do deserto ao encontrar um oasis e encontrá-la límpida e fresca! Pedras não deslizam suavemente como líquidos!
Tempestades trazem chuva, mas trazem destruição e desespero!
Mal acabou de pensar em tempestade e ouviu um trovão distante!
Correu para a janela! Um relâmpago riscou o céu de ponta a ponta e um trovão altissonante acordou todos os humanos e todos os pássaros que dormiam durante a madrugada! Outro corisco incendiou as nuvens, mais perto de seu prédio! Sentiu medo e fechou rapidamente a janela! O tempo continuou furioso, mandando trovões, raios e chuva em abundância! A enxurrada da calçada começou a carregar o lixo da rua e o papelão dos homens de rua que os usavam como cama!
Os trovões foram se distanciando! E os relâmpagos diminuindo a potência de seus raios!
Encorajou-se e abriu de novo a janela! A enxurrada passava com turbulência pela rua, levando os sacos de lixo, os papelões que serviam de camas dos sem tetos e sujando a sua alma de homem bom, que nunca fizera mal a ninguém, mas nunca tinha feito algo de bom para aqueles andarilhos da noite, drogados ou não, mas sempre carregados de uma imundície de propósitos que a vida lhes impingia no seu dia a dia de um viver profano para com Deus e indigno para com os homens!
Respirava com dificuldade porque o medo de estar sozinho frente à tantas intempéries físicas e psicológicas, ainda o atormentavam!
Levou um grande susto quando aquela mão cálida e suave acariciou-lhe a fronte e aquela boca cheia de carinho, disse-lhe suavemente:
- Acorda, querido! Acho que você está tendo um pesadelo!