Primeiro dia

Primeiro dia

 

    Nesta madrugada, ao acordar, senti-me na Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, minha querida faculdade!  Era o primeiro dia de aula! Aula de Anatomia, cadeira famosa da faculdade! Professores rígidos! Alguns estrangeiros! Isto era o que corria entre os calouros, embora nem tudo fosse verdade! Que ansiedade! Que curiosidade! Éramos navegantes de primeira viagem! Iríamos mergulhar em um mundo completamente diferente daquele em que vivíamos! Mas, não queríamos outro mundo, queríamos aquele que estava detrás daquelas portas! Seis e meia da manhã! As portas ainda estavam fechadas, mas sentíamos que pessoas trabalhavam dentro das salas! O homem do sanduiche, como era chamado o senhor que nos venderia sanduiches de mortadela, acabara de chegar! A tagarelice dos alunos preenchia todo o pátio, debaixo de árvores maravilhosas que nos protegiam do sol! De repente, às 7 horas em ponto, as portas foram abertas! Nós, jovens de 18, 19 anos, famintos de saber, entramos atropeladamente como se pobres pecadores estivéssemos entrando para o céu. Na verdade, para mim, isso foi verdadeiro! A ansiedade e a curiosidade foram logo desafiadas pelo quadro dantesco das peças embebidas em formol, que estavam colocadas sobre as mesas!  O cheiro de formol que delas exalava, fazia os olhos debulharem-se em lágrimas e os pulmões intoxicados terem grande dificuldade para respirar! As luvas de látex que tentávamos calçar, enrolavam nossos dedos e a nossa capacidade de usá-las! Somente quem tentou calçar luvas de látex pela primeira vez, sabe do que estou falando! Havia dedos de mais para serem colocados nas luvas, mas, mesmo assim, sobravam dedos de luvas vazios! Tentávamos sorrir, mas o formol cortava o nosso sorriso pelo meio e destravava as portas do nosso reservatório de lágrimas! Naqueles primeiros dias o homem do sanduíche levava de volta metade dos sanduíches que trazia! Ainda não estávamos acostumados a comer sanduíche de mortadela com cheiro de formol!

   O tempo passou... Veio o diploma, veio a residência! Começamos a aprender a ser médicos de verdade, e a seguir cada um  tomou  o seu destino! Hoje, depois de 50 anos de formado, lembro-me com saudade daqueles primeiros dias de aulas nas salas de anatomia! Naqueles dias lidávamos com peças (fragmentos de órgãos humanos), impregnados de formol de difícil tolerância! Hoje lidamos com seres humanos completos, com corpo, alma, sentimento, dor, tristeza e queixas quase infindáveis que nos seguem durante toda a nossa vida! Tenho pacientes que acompanho há cinquenta anos! Ainda me emociono quando recebo pacientes do meu começo de carreira e ele me diz que é meu cliente desde o meu tempo de residência!   Ainda me emociono quando recebo um paciente que chega em cadeira de rodas e sai andando do consultório! Milagre? Nada disso! Simplesmente ele não andava porque faltava-lhe confiança! Faltava alguém que lhe dissesse que a doença não era tão grave e ele poderia sim, se quisesse, sair andando! Ainda me emociono quando uma velhinha me beija a testa, me abraça e me diz: "doutor, eu estava na cama, fui para a UTI após a cirurgia de fraturas das duas pernas, e hoje estou andando, graças ao senhor! Ainda me emociono quando vejo uma criança sair  sorrindo do consultório, quando minutos antes entrara com os  olhos repletos de lágrimas!

  Assim é a minha vida e de tantos colegas que já ultrapassaram cinquenta anos de atividade e continuam tentando fazer as velhinhas e os velhinhos sorrirem e andarem, fazendo crianças que entraram chorando nos consultórios,  saírem sorrindo, fazendo o ser humano acreditar na vida, porque nada mais há de importante do que ela! 

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