Compras governamentais e os Tratados internacionais: participação de estrangeiros em licitações

Compras governamentais e os Tratados internacionais: participação de estrangeiros em licitações

As compras governamentais compõem um tema que frequentemente desperta discussões em inúmeros âmbitos sociais e acadêmicos. No Brasil, tal matéria foi objeto de preocupação explícita na Constituição Federal: com o objetivo de garantir a aplicação dos princípios administrativos às compras governamentais, em seu artigo 37, inciso XXI, a Carta Maior estabelece a regra da licitação para compras governamentais.

Tal regra adquire especial simbolismo quando analisado o local em que foi inserido tal inciso: a obrigatoriedade de licitações está no capítulo VII, que trata, justamente, da Administração Pública. O caput do artigo, por sua vez, abrange tanto a Administração Pública direta, quanto a indireta. Este desenho normativo nos indica que a preocupação do legislador constitucional era o de consolidar o entendimento de que as compras governamentais devem obediência aos cinco princípios da Administração Pública, consagrados no caput do artigo 37: i) legalidade, ii) impessoalidade, iiii) moralidade, iv) publicidade, v) eficiência.

No caso brasileiro, as disposições normativas sobre as compras governamentais são ainda abrangidas na lei 8.666/93, que trata de maneira específica - ainda que infraconstitucional, isto é, faz parte do ordenamento jurídico, contudo em um nível hierárquico inferior à Constituição Federal - do tema das licitações e contratos administrativos. Tal lei é o marco legal para as compras da Administração Pública brasileira, de modo que foram abordadas, no âmbito da referida lei, os seguintes pontos, dentre outros: i) a regra geral de obrigatoriedade de licitações, bem como as hipóteses de dispensa ou inexigibilidade do processo licitatório; ii) a possibilidade de serem definidas "margens de preferência" para produtos e serviços "nacionais" ou prestados por empresas que cumprem a reserva de cargos prevista em lei para pessoas com deficiência ou reabilitado da Previdência Social; iii) o tratamento diferenciado para micro e pequenas empresas; iv) as modalidades lícitas de licitação - dentre as quais se destacam a concorrência, tomada de preços, convite, concurso e leilão -, bem como suas etapas e documentos mínimos para participação dos interessados; v) do processo licitatório em si, desde os atos preparatórios internos para lançamento do edital até o julgamento das propostas e a adjudicação - ato da Administração Pública, pelo qual é atribuído ao vencedor o objeto da licitação, de modo a reconhecer que o proponente com a melhor oferta será o fornecedor, caso a compra pública realmente aconteça.

Neste contexto, é importante escrutinar o tema da "margem de preferência" para produtos e serviços nacionais, estabelecida no artigo 3º, §5º, I da supracitada lei. Seria tal disposição normativa condizente com tratados internacionais? Tal "margem de preferência" não é um tratamento prejudicial aos concorrentes estrangeiros?

No âmbito multilateral, as compras governamentais são tratadas sob o arcabouço da Organização Mundial do Comércio (OMC), através do Acordo sobre Compras Governamentais (GPA). Embora o Brasil não seja signatário de tal Acordo, sua situação atual é de "membro observador", em processo de adesão.

O objetivo deste instrumento normativo internacional é o de promover a abertura coordenada do mercado de compras governamentais, através da liberalização e expansão deste mercado, utilizando a estrutura multilateral para tanto. Tal Acordo, na atualidade, possui 48 partes signatárias - notadamente os Estados-Membros da União Europeia, Estados Unidos, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Suíça. Com base na lista de maiores PIBs nominais dos países, elaborada pelo Banco Mundial, dentre as 25 maiores economias do mundo, apenas China, Índia, Brasil, Rússia, México, Indonésia, Arábia Saudita, Turquia e Argentina não aderiram ao Acordo. Contudo, China, Brasil, Rússia e Arábia Saudita estão em processo de adesão.

Tal Acordo se tornou relevante na medida em que prevê compromissos para os procedimentos, acesso ao mercado, transparência e não-discriminação. No âmbito da “não-discriminação”, o artigo 4º, § 1º estabelece que nas compras governamentais, um país signatário deve tratar os “vendedores” de bens e serviços de outros Estados signatários, da mesma forma como trata seus próprios nacionais. Ou seja, a partir do momento em que aderir formalmente ao GPA e suas disposições passarem a viger, o Brasil deverá conceder aos nacionais de outros Estados signatários, o mesmo tratamento dispensado aos brasileiros nas licitações.

Conforme seu artigo 2º, § 2º, o Acordo considera que são compras governamentais, de modo geral: i) as compras de bens ou serviços - bem como a compra de qualquer combinação de bens e serviços -, ressalvadas as compras que não atinjam um "valor relevante" e excetuadas as compras que tenham objetivo de venda comercial ou revenda ou utilização como insumo para produção de bens ou serviços destinados à venda comercial ou revenda; ii) todas as aquisições governamentais, independentemente de sua estrutura contratual, incluindo, portanto, compras, aluguéis, financiamentos, dentre outros; iii) as compras da Administração Pública indireta. 

Já em seu § 3º, são também admitidas como exceções, que desobrigam a aplicação de tal Acordo, essencialmente: i) a aquisição ou aluguel de terrenos ou prédios; ii) os acordos não contratuais, bem como os atos unilaterais do Estado signatário, como, por exemplo, as garantias e os incentivos fiscais; iii) a contratação de serviços especializados para o mercado financeiro, caso as instituições financeiras públicas sejam reguladas; iv) a contratação de trabalhadores do setor público; v) as compras destinadas à ajuda e assistência internacional, bem como quando são destinadas ao estabelecimento de tropas em outros países; vi) compras que estão abrangidas por tratados próprios ou organizações internacionais específicas.

O Acordo prevê, ainda, a possibilidade de que cada parte signatária defina o alcance de tais regras. Isto é, os Estados poderão definir para quais compras, entidades e situações tais regras vigerão, bem como os valores mínimos que são considerados "relevantes" para definir a aplicação ou não do GPA. Ademais, na forma do artigo 3º, é permitido que os Estados excluam a aplicação do GPA quando o objeto da compra pública causar prejuízos à segurança pública, proteção da ordem e moral pública, proteção humana, vegetal e animal, proteção da propriedade intelectual e proteção aos bens e serviços prestados por pessoas com deficiência, instituições filantrópicas ou trabalho prisional.

Evidencia-se, outrossim, que o referido Acordo abrange, lato sensu, muitas das obrigatoriedades e exceções que a lei 8.666/93 traz em seu delineamento relativo às licitações. Portanto, após a efetiva adesão, ratificação e entrada em vigor do GPA no Brasil, as licitações brasileiras poderão passar por uma readequação, principalmente no tocante às “margens de preferência” para produtos brasileiros, prevista no artigo 3º, §5º, I da lei. A “margem de preferência”, caso seja mantida, poderá ser entendida como “tratamento mais favorecido”, devendo ser estendida para todas as demais partes signatárias do GPA.

O argumento brasileiro para uma eventual manutenção de tais margens de preferência poderá ser fundamentado no artigo 5º do GPA, o qual garante aos Estados em desenvolvimento e Estados menos desenvolvidos, a possibilidade de negociar um período de transição, durante o qual continuariam a viger tais “margens”.  

Para a Administração Pública, o aumento da concorrência tende a ocasionar preços mais baixos na contratação de bens e serviços - caso seja licitação sob o critério do “menor preço” - ou aumento da qualidade - na hipótese de ser licitação sob os critérios do “melhor técnica” ou “técnica e preço”. Entretanto, tais benefícios somente acontecerão na hipótese de que realmente haja o aumento dos participantes nas licitações e os novos ofertantes concorram de maneira verdadeiramente benéfica à Administração Pública.

 

OBS 1: vale destacar que a lei 8.666/93 poderá ser modificada, em breve, pelo projeto de lei 4.253/2020, o qual já foi aprovado por ambas as Casas Legislativas e depende de sanção presidencial até a edição final deste texto.

OBS 2: Sob o arcabouço regional e bilateral, o Brasil é signatário de Acordos relativos às compras governamentais, respectivamente, com o Mercosul (Protocolo de Contratações Públicas do Mercosul), com o Peru (Acordo de Ampliação Econômico-Comercial entre a República Federativa do Brasil e a República do Peru) e o Chile (Acordo de Contratação Pública entre a República Federativa do Brasil e a República do Chile).

 

Texto escrito por Luís Felipe Borges Taveira, estudante de Matemática Aplicada aos Negócios na FFCL-USP/RP

Imagem: Vov World

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