Defesa dos usuários de Serviços Públicos

Defesa dos usuários de Serviços Públicos

Em 2020, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) completa 30 anos de existência. É dispensável falar sobre como essa lei é importante para o Brasil, e como representa um verdadeiro marco para equilibrar as relações comerciais no contexto da sociedade de consumo atual. Hoje é possível encontrar data de vencimento e informação nutricional em todos os produtos no mercado, as empresas possuem canais de comunicação com os consumidores, que estão cada vez mais conscientes de seus direitos, e existe um órgão forte e independente para processar reclamações - o Programa de Proteção e Defesa do Consumidor (PROCON).

Contudo, já parou para se perguntar a quais tipos de serviços o CDC se aplica? Será que se aplica, por exemplo, àqueles prestados pela Administração Pública, como o serviço de saúde prestado em uma UBS? O cidadão é considerado consumidor dos serviços públicos? O presente artigo tem por objetivo responder a essas questões e informar o leitor a respeito de seus direitos enquanto usuário de serviços públicos.

 

Serviços Públicos e o CDC

O Código de Defesa do Consumidor é aplicável sempre que houver uma relação de consumo com três elementos básicos: consumidor, fornecedor e produto ou serviço. Com relação especificamente aos serviços oferecidos pelo governo, a própria lei diz que tem como princípio a racionalização e melhoria dos serviços públicos (art. 4º, VII) e que é direito do consumidor a prestação eficaz e adequada destes (art. 6º, X). Além disso, o art. 22 do CDC reforça essas ideias e afirma que se as pessoas jurídicas responsáveis não prestarem os serviços públicos de forma adequada, eficiente e segura, elas podem ser responsabilizadas como qualquer outro prestador de serviços.

No entanto, cabe aqui uma ressalva com relação ao tipo de serviço público ao qual a lei se refere! 

O serviço público é uma atividade prestativa titularizada pela Administração Pública que tem como fim satisfazer as necessidades da população, mas nem sempre ele será regulado pelo CDC. Um serviço público se encaixa em uma relação de consumo apenas quando é possível identificar o usuário e quando for possível mensurar a prestação, ou seja, quando se trata de um serviço divisível. Imagine, por exemplo, os serviços de água. Cada cidadão tem seu próprio registro de consumo e paga de acordo com aquantia que utilizou. Nesse caso, tem-se uma relação de consumo entre o usuário do serviço público (fornecimento de água) e a empresa prestadora.

Além disso, o fato de o serviço público ser uma atividade titularizada pela Administração Pública significa que ela pode tanto prestar esse serviço diretamente, quanto ceder a execução para um particular. Por exemplo, até 1999, quem prestava os serviços de energia elétrica na cidade de São Paulo era uma empresa estatal, a Eletropaulo. Mas hoje em dia quem o faz é a Enel, uma empresa privada. Em ambos os casos, pelo fato de se tratar de um serviço divisível, incide o CDC.

A distinção de serviços públicos é importante pois existem serviços indivisíveis, em que não é possível individualizar quanto cada um usa e gasta. Por exemplo, todos os cidadãos utilizam o serviço de iluminação pública, mas ninguém paga um valor mensal de acordo com o tanto que utilizou. Os gastos com iluminação pública, saúde, educação entre outros são pagos por todos com impostos, independentemente de usar muito ou pouco. Esses serviços indivisíveis não são regulados pelo Código de Defesa do Consumidor, mas sim por outro instrumento legal. 

 

Código de Defesa dos Usuários de Serviços Públicos (CDUSP)

A Constituição Federal prevê no seu art. 37, §3º, I, que é direito de todo cidadão participar da gestão dos serviços públicos, fazer reclamações quanto à sua prestação, inclusive em serviços de atendimento específicos e a avaliação periódica da qualidade dos serviços. No entanto, o art. 27 da CF previu a necessidade de edição de uma lei complementar para regular de forma específica o uso de serviços públicos.

E assim, em 2017, surgiu o Código de Defesa dos Usuários de Serviços Públicos (CDUSP)! Ele regula a participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos (sejam eles divisíveis ou indivisíveis) prestados direta ou indiretamente pela administração pública. 

O art. 6º desta Lei assegura alguns direitos básicos, como participação na prestação e avaliação dos serviços, liberdade de escolha, acesso e proteção das informações pessoais do usuário, obtenção de informação, entre outros. No âmbito dos deveres, o art. 8º diz que os usuários devem utilizar o serviço de modo adequado, prestar informações, colaborar na prestação e preservar os bens públicos.

O CDUSP estabelece também algumas diretrizes para os prestadores de serviços públicos, como a igualdade no tratamento dos usuários, dever de prestar atendimento por ordem de chegada e comunicação prévia de desligamento de um serviço em razão de descumprimento.

 

Instrumentos

O CDUSP estabelece ainda alguns instrumentos para garantir os direitos dos usuários, elencados no próprio texto legal. São eles: 1) quadro geral de serviços, 2) carta de serviços ao usuário, 3)  direito de manifestação, 4) ouvidoria, 5) conselho de usuários, 6) avaliação continuada. Vamos agora entender o que é cada um!

O quadro geral de serviços é um resumo de todos os serviços prestados por determinada entidade, que deve ser apresentado anualmente. Trata-se, basicamente de um mapa dos serviços prestados. Veja abaixo um exemplo:

Parecido com o quadro geral, tem também a carta de serviços ao usuário que contém informações sobre os serviços e, além disso, quem pode acessá-lo, taxa, etapas, padrões de qualidade, forma, horário e requisitos para atendimento entre outras. Veja um exemplo de carta de serviços da Secretaria do Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro: https://www.rj.gov.br/Uploads/Noticias/8736carta%20de%20servi%C3%A7o2020.pdf

O direito de manifestação abrange os direitos de fazer reclamações, denúncias, sugestões, elogios etc. com relação à prestação de serviços públicos. O cidadão, desde que identificado, tem o direito de se manifestar por qualquer meio (verbal, eletrônico etc.) e por qualquer motivo.

E falando em poder se manifestar, o CDUSP estabelece também as ouvidorias como meio para promover a participação do usuário, acompanhar a prestação do serviço, irregularidades e manifestações, além de propor soluções e mediar/conciliar conflitos. A ouvidoria deve ser fiscalizada constantemente, elaborar relatório anual e analisar as manifestações recebidas e indicar quais providências devem ser tomadas.

Outro instrumento bem interessante que foi criado com o CDUSP é o conselho dos usuários, um órgão consultivo formado por usuários e que tem como objetivo acompanhar os serviços públicos prestados, avaliar a qualidade, propor melhorias, ajudar a definir diretrizes de atendimento e monitorar a ouvidoria. Deve haver diversidade dos usuários, que são escolhidos em processo aberto ao público. Veja o site do conselho dos usuários dos serviços públicos do governo federal: https://conselhodeusuarios.cgu.gov.br/inicio

Por fim, todos os órgãos e entidades públicas devem avaliar a prestação dos seus serviços. Trata-se de avaliação continuada, em que a administração pública deve pelo menos uma vez ao ano realizar uma pesquisa de satisfação com os usuários, analisando a qualidade do atendimento, número de manifestações, rapidez etc. Os resultados dessas avaliações devem ser computados e sistematizados em um ranking de reclamações das entidades. 

É preciso destacar, por fim, que pelo fato de o Código ser muito novo e não haver uma fiscalização muito grande com relação ao cumprimento de suas disposições, muitos dos instrumentos previstos ainda não são encontrados na prática. Por exemplo, muitas entidades não possuem ainda conselho de usuários e o ranking de reclamações tampouco foi criado. Contudo, o caminho para ver todos os avanços do Código de Defesa dos Usuários de Serviços Públicos na prática é ter cada vez mais pessoas cientes de suas disposições e instrumentos, e pessoas dispostas a pressionar as entidades a cumpri-lo, de modo que o presente texto tem a intenção de suscitar essa consciência e pró-atividade. 

 

Que existe um código de defesa do consumidor todo mundo sabe, mas você sabia que existe um código de defesa do usuário de serviço público? Pois é! Desde 2017 temos uma lei que prevê alguns direitos e deveres para os usuários e para as empresas que prestam os serviços, além de alguns instrumentos para garantir a qualidade deles.

Texto escrito por Júlia Leal da Silva, estudante de Direito na FDRP-USP.

Imagem: Freepik

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