Dívida Pública: dois lados de uma mesma moeda

Dívida Pública: dois lados de uma mesma moeda

Se alguém nos dissesse, no início de 2020, que terminaríamos o ano com mais de 14 milhões de brasileiros desempregados [1], dólar a quase R$6,00 e com o fechamento de cerca de 716.000 empresas [2], provavelmente não acreditaríamos. Pensando nisso, podemos dizer que além de trazer um cenário de pura incerteza e diversos impactos às mais diversas economias do mundo, o novo coronavírus obrigou os líderes mundiais a tomar decisões que buscassem manter o bem estar da população nesse contexto catastrófico. No Brasil, diversas ações do poder público foram colocadas em prática para tentar amenizar os impactos da pandemia logo que a crise sanitária atingiu o território nacional; os exemplos vão desde o auxílio emergencial e crédito para empresas, à compra de diversos equipamentos para o tratamento dos doentes e para proteção individual. 

No entanto, não devemos nos esquecer que o novo coronavírus “pegou os governantes de surpresa”. Isso quer dizer que, lidar com o covid-19 e seus estragos - tanto na perspectiva de formulação de políticas públicas quanto na perspectiva de financiamento - afetaram consideravelmente os planos para o ano de 2020.  Nesse sentido, além das despesas já previstas pelo Orçamento para o ano corrente, os gestores brasileiros tiveram que lidar com outros gastos, inesperados: as primeiras parcelas do auxílio emergencial custaram aos cofres públicos um valor próximo a R$ 184,6 bilhões [3]; os gastos liberados pelo Ministério da Saúde para a aquisição de EPIs, testes de diagnóstico, medicamentos, respiradores, habilitação de leitos de UTI, estruturação dos serviços e para a contratação de novos profissionais somaram cerca de 11 bilhões [4]. 

E ainda, com o isolamento social e a paralisação de alguns segmentos do comércio, a atividade econômica brasileira freou, refletindo em uma significativa frustração de receitas tributárias. Além disso, o Governo Federal deve perder R$14,1 bilhões com a suspensão do Imposto Sobre Operações Financeiras (IOF) em operações de crédito e R$ 3,2 bilhões pela redução das alíquotas de importação de produtos hospitalares [5]. Se lembrarmos de como funciona o Orçamento Público, podemos visualizar melhor o problema: no planejamento de quanto - e com o quê - destinar a verba do poder público, é feita uma projeção do faturamento com os tributos, assim como uma determinação das despesas para o ano, limitadas pelo teto de gastos. Dessa forma, há uma melhor estimativa do quanto pode ser gasto para que não ocorra um rombo nas contas públicas e o governo aumente seu déficit. É por isso que o abrupto aumento de gastos, somado à queda na arrecadação e a continuidade da PEC 55/2016 (teto de gastos) tem acendido cada vez mais o debate em relação à Dívida Pública brasileira, que já era um tema discutido por ser um significativo destino dos gastos do Orçamento Público nacional.

Mas isso quer dizer que a Dívida Pública é algo ruim para o Brasil? Ao longo deste texto iremos abordar duas perspectivas desse déficit, de modo que obtenhamos a resposta para essa pergunta sob a perspectiva da Administração Pública.

 

Mas afinal, o que é Dívida Pública?

É importante termos em mente que todo déficit público nasce - e aumenta - a partir de um desequilíbrio: o governo gasta mais do que arrecada [6]. Dessa forma, quando a receita tributária não é suficiente para cobrir as despesas com os a administração e os serviços públicos, o governo é financiado por credores (que podem ser bancos, pessoas físicas, jurídicas, entre outros), originando - ou elevando - a Dívida Pública. Pensando nisso, de maneira resumida, podemos definir a Dívida Pública como o montante que um governo deve tanto para credores nacionais (dívida interna) quanto para credores internacionais (dívida externa), incluindo as despesas com juros.

 

O lado positivo da Dívida Pública

Imagine que uma pessoa comum queira fazer um investimento: comprar um carro, ou até mesmo uma casa. Poderia acontecer de ela não ter recursos disponíveis para tal, certo? Pelo menos não no momento atual, em que ela decidiu realizar esse investimento. A que meios a pessoa poderia recorrer a fim de atingir o seu objetivo? Um financiamento junto ao banco ou até mesmo pegar dinheiro emprestado com algum conhecido são algumas das alternativas. A questão é, a pessoa está se endividando agora para que possa ter um bem - no caso o carro ou a casa. 

Embora a situação retratada acima seja característica de uma tomada de decisão individual, o mesmo raciocínio pode ser atribuído à esfera governamental. É comum que os governos (federal, estadual e municipal) queiram investir - seja em hospitais, escolas ou outras obras e feitos públicos - mas não tenham como arcar com os custos no momento. No entanto, igual a uma pessoa comum, o Estado também tem a possibilidade de captar empréstimos para realizar seus projetos de investimento.

Esta é a principal vantagem da Dívida: viabilizar projetos que não poderiam ser custeados integralmente no momento atual. Na verdade, se pensarmos mais a fundo, no caso do Poder Público, isso até poderia ser viabilizado. Vamos imaginar que um Governo Estadual queira construir um hospital em sua capital, mas que as receitas tributárias previstas para o ano não sejam suficientes para liquidar os gastos já comuns mais as despesas com a obra. Para não contrair uma dívida, as alíquotas de alguns impostos, como o ICMS e o IPVA, poderiam aumentar de modo a elevar o faturamento do estado. Outra alternativa para pagar os custos com a construção poderia ser a diminuição dos gastos discricionários recorrentes, ou seja, tirar parte da verba de algum setor no qual o governo pode decidir o montante a ser investido e destiná-la à construção do hospital. 

Todavia, a decisão de quitar esse projeto integralmente no momento atual faria com que os custos caíssem “somente” sobre a geração atual - tanto o custo de ter que pagar mais tributos quanto o custo de deixar de ter acesso a certos serviços públicos. Mas, se pararmos para pensar, o hospital, após construído, ficaria disponível para diversas gerações além daquela que arcaria com as despesas. Nessa linha de raciocínio, ao invés de pagá-las “de uma vez”, o estado pode financiar a construção e liquidá-la em várias parcelas, distribuindo, assim, o seu custo com as gerações futuras, que também serão beneficiadas. Através da Dívida Pública, o governo pode utilizar parte da arrecadação atual e parte da arrecadação futura para pagar as parcelas da construção do hospital, de modo que as despesas de investimento sejam divididas com o máximo possível de gerações que irão tirar proveito da obra.

 

O lado negativo da Dívida Pública

De maneira análoga a uma família que contrai dívidas para custear bens e serviços que não pode bancar no momento atual, o Governo também está sujeito a incidência de juros sobre o montante do empréstimo contraído, além de uma classificação de o “quão bom pagador é”, o que influencia nas taxas de juros exigidas. Pessoas com mais risco de “calote” tendem a pagar juros mais altos, certo? Essa perspectiva também pode ser pensada para países que tomam alguma dívida. Assim sendo, o dispêndio com os juros pode ser um fator preocupante, fazendo o saldo da Dívida Pública aumentar, assim como acontece com a dívida de uma família que não consegue liquidar o que deve a terceiros. 

Mas, para entendermos melhor isso no ponto de vista da esfera pública, vamos definir dois conceitos importantes nessa discussão: receitas não financeiras (ou receitas primárias) e despesas não financeiras (ou despesas primárias). Esses termos não envolvem operações com juros, correções e amortizações de empréstimos do passado. Portanto, quando as receitas primárias são maiores que as despesas primárias, isso quer dizer que o Poder Público arrecadou uma receita tributária suficiente para cobrir os gastos com a manutenção da máquina pública e com a assistência à população e ainda sobrou um determinado montante. Com isso, haverá um Superávit Primário, ou seja, o governo terá “dinheiro sobrando”, verba que pode ser utilizada para ir abatendo a Dívida Pública.

Porém, no caso de não haver essa poupança, ou seja, de o governo ter despesas que excedam o faturamento, o governo não é capaz de pagar o principal nem os juros do déficit no período. Em outras palavras, o Poder Público não consegue diminuir o estoque da Dívida; pelo contrário. O montante (principal da dívida + juros) aumenta e os juros incidem sobre um valor cada vez maior, gerando uma Dívida Pública cada vez maior. No fim das contas, podemos perceber que isso vai se tornando uma verdadeira bola de neve se a situação das contas públicas não for revertida. 

Mas quais as consequências disso? E o que acontece se o governo declarar que não pode arcar com os empréstimos contraídos e seus juros?

O aumento da Dívida Pública total (principal + juros) pode fazer com que os governos destinem uma maior quantidade de suas receitas tributárias para amortizá-la e evitar que ela cresça ainda mais. No entanto, como o faturamento com os tributos de certa forma não acompanham o crescimento do déficit público, o estado pode ter que ‘sacrificar’ alguns gastos com o fim de ter verba disponível para manter os pagamentos da Dívida sem contrair uma nova. Outra alternativa pode ser ‘forçar’ o aumento das receitas a fim de ter mais recursos para cobrir os gastos - gasto comuns, já previstos e gastos com a dívida e juros. 

O impacto - negativo - disso na vida dos brasileiros é nítido: uma menor renda disponível - uma vez que uma maior parte dela será destinada ao pagamento de tributos - e um menor usufruto dos bens e serviços públicos, dado que parte do dinheiro que seria destinado a isso pode ser cortado ou contingenciado para ‘dar um fôlego’ às contas públicas. Essa ‘fuga’ de recursos do Orçamento Público somada a uma maior carga tributária pode, no longo prazo, resultar em um menor crescimento econômico, que por sua vez tende a gerar menor receita tributária e menos recursos a serem gastos com a máquina pública e sua dívida.

Outra consequência de uma Dívida Pública descontrolada é a perda de credibilidade do país. Se um país não está conseguindo liquidar seus passivos, isso pode ser mal visto pelos credores, de modo que eles exijam uma maior taxa de juros para continuar emprestando dinheiro frente a uma maior possibilidade de ‘calote’. Nesse aspecto, devemos nos atentar a rolagem da dívida, algo que já acontece de forma considerável em nosso país. Para vermos melhor o problema, talvez implícito para muitas pessoas, podemos pensar no pagamento de US$ 15,5 bilhões ao FMI em 2005; uma ótima notícia pois o Brasil quitou parte de sua dívida, certo? Na verdade, não necessariamente. O pagamento foi feito mediante a emissão de novas dívidas com juros muito superiores aos que estavam sendo pagos ao FMI, o que quer dizer que não pagamos a dívida de verdade, ela simplesmente mudou de mãos e ficou em condições mais onerosas [7]. 

Além disso, em casos mais extremos pode ser que até mesmo que os emprestadores neguem a concessão do crédito. Essa última possibilidade seria realmente ruim: imagine se o Brasil não pudesse pedir dinheiro emprestado para lidar com os impactos do coronavírus neste ano e pudesse contar apenas com o dinheiro dos tributos - que caíram significativamente - para isso.  Não é difícil chegar à conclusão de que estaríamos em um cenário caótico de uma crise sanitária e econômica bem mais forte do que vivenciamos hoje. Portanto, pensando no estado como uma instituição responsável pelo bem estar social, podemos ver que o aumento descontrolado da dívida pública não é algo bom para o país.

 

Então a Dívida Pública é boa ou ruim?

Note que, no fim do parágrafo acima, foi dito que o aumento descontrolado da dívida não é algo bom para o país, e não o seu aumento em si. Se uma pessoa aumenta seus empréstimos com terceiros, mas é capaz de pagá-lo sem problemas, isso não é de fato um problema. O mesmo raciocínio pode ser pensado para o Setor Público.

Pense em uma economia com um montante elevadíssimo de Dívida Pública, mas com uma capacidade igualmente grande de alavancar recursos na economia a partir da arrecadação de impostos, refletindo em uma alta produção (PIB). A preocupação com a déficit público certamente não seria tão grande assim, pois o país teria um potencial considerável de honrar suas dívidas - e juros. É por isso que a relação “dívida/PIB” é bastante utilizada como um indicador da capacidade de pagamento das economias e como uma forma de compará-las. 

Com base nisso, o ponto chave para descobrirmos de a Dívida Pública é ‘boa’ ou ‘ruim’ para um país é vermos sua sustentabilidade: a projeção dessa dívida no tempo indica que o governo irá conseguir administrá-la no futuro, ou seja, pagar o que deve e/ou renovar os contratos sem um significativo aumento dos gastos com juros? Se a resposta for sim, a Dívida Pública estará mais próxima do seu ‘lado doce’. Caso contrário, é bem possível que o cidadão sinta as consequências na disponibilidade e qualidade dos serviços públicos. 

A lição fundamental dessa discussão recai na relevância de se zelar pela qualidade do crédito público e na gestão estratégica desse passivo. Só assim se pode valer do endividamento e de seus benefícios de forma eficiente. Aqui, mais uma vez, a analogia ao cidadão comum se faz válida, o qual deve manter um bom crédito para garantir permanentemente melhores condições de financiamento, como por exemplo menores taxas de juro e maiores prazos para pagamento [8].

Texto escrito por Luma Cicilia Ribeiro Pires, estudante de Economia Empresarial e Controladoria na FEA-USP/RP

Referências:

[1] DESEMPREGO DIANTE DA PANDEMIA BATE RECORDE E ATINGE MAIS DE 14 MILHÕES DE BRASILEIROS, DIZ IBGE. Desemprego diante da pandemia bate recorde e atinge mais de 14 milhões de brasileiros, diz IBGE. G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/10/16/mais-de-41-milhoes-de-brasileiros-ficaram-desempregados-diante-da-pandemia-aponta-ibge.ghtml>. Acesso em: 7 Dec. 2020.

[2] OLIVEIRA, Joana. 716.000 empresas fecharam as portas desde o início da pandemia no Brasil, segundo o IBGE. EL PAÍS. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-19/716000-empresas-fecharam-as-portas-desde-o-inicio-da-pandemia-no-brasil-segundo-o-ibge.html#:~:text=Desde%20que%20a%20pandemia%20do,feira%20(16%2F07)>. Acesso em: 7 Dec. 2020.

[3] Gastos com as cinco primeiras parcelas do auxílio emergencial devem somar R$ 184,6 bilhões, diz Caixa. InfoMoney. Disponível em: <https://www.infomoney.com.br/economia/gastos-com-as-cinco-primeiras-parcelas-do-auxilio-emergencial-devem-somar-r-1846-bilhoes-diz-caixa/>. Acesso em: 7 Dec. 2020.

[4] Governo Federal habilita mais 458 leitos de UTI. Governo do Brasil. Disponível em: <https://www.gov.br/pt-br/noticias/saude-e-vigilancia-sanitaria/2020/05/governo-federal-habilita-mais-458-leitos-de-uti-para-pacientes-da-covid-19>. Acesso em: 7 Dec. 2020.

[5] GASTOS PARA ENFRENTAR COVID-19 DEVEM FAZER DÍVIDA PÚBLICA BATER RECORDE, DIZ SECRETÁRIO DE FAZENDA - NOTÍCIAS. Gastos para enfrentar Covid-19 devem fazer dívida pública bater recorde, diz secretário de Fazenda - Notícias. Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/680662-gastos-para-enfrentar-covid-19-devem-fazer-divida-publica-bater-recorde-diz-secretario-de-fazenda/>. Acesso em: 7 Dec. 2020.

[6] TIAGO REIS. Déficit Público: saiba o que é e quais são suas consequências. Suno Research. Disponível em: <https://www.sunoresearch.com.br/artigos/deficit-publico/>. Acesso em: 15 Dec. 2020.

[7] O que é Dívida Pública?. Auditoria Cidadã. Disponível em: <https://auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2013/10/FAQ-Auditoria-Cidad%C3%A3.pdf>. Acesso em: 7 Dec. 2020.

[8] O que é Dívida Pública? Qual o seu papel?. Tesouro Transparente. Disponível em: <https://www.tesourotransparente.gov.br/videos/a-divida-em-videos/2-o-que-e-a-divida-publica.pdf>. Acesso em: 7 Dec. 2020.

Imagem: Folha Geral

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