Entre o Brasil imaginado e o Brasil sentido: a necessidade de universalização dos serviços públicos

Entre o Brasil imaginado e o Brasil sentido: a necessidade de universalização dos serviços públicos


A ideia de que os serviços públicos existem para garantir direitos fundamentais a toda a população é uma das bases do pacto democrático brasileiro assumida na Constituição Federal de 1988, a qual consagra o princípio da universalização como um compromisso do Estado, especialmente nos campos da saúde, da educação, da assistência social e de outros serviços essenciais que asseguram condições mínimas de dignidade humana. 
O papel da Administração pública é justamente oferecer aquilo que o mercado não pode ou não consegue entregar: acesso igualitário, independentemente da renda, da origem, da localização geográfica ou do capital social do cidadão. No entanto, esse programa constitucional de que todos têm direito a serviços públicos de qualidade continua sendo, em muitos aspectos, uma meta distante. 
O Brasil imaginado, descrito nos documentos oficiais, onde o acesso à saúde e à educação é garantido a todos, contrasta com o Brasil sentido por quem acorda às 4 da manhã para levar o filho a uma escola sem merenda ou espera meses por uma consulta básica no posto de saúde mais próximo. Essa distância entre o país prometido e o país vivido não é retórica: é a experiência concreta de milhões de brasileiros.
Um olhar atento sobre os dados educacionais ajuda a entender tanto os avanços quanto os limites dessa universalização. De acordo com o IBGE, em 2023, 99,5% das crianças brasileiras entre 6 e 10 anos estavam matriculadas em instituições de ensino. Destas, 93,3% frequentavam a rede pública. A princípio, esse dado revela um sucesso: o Estado conseguiu absorver a enorme maioria das crianças que não puderam contar com a rede privada. A educação pública, nesse cenário, cumpre uma função indispensável para garantir a inclusão escolar nos anos iniciais. No entanto, a qualidade da educação oferecida, as condições das escolas, a valorização dos profissionais da educação e a permanência dos alunos ao longo da trajetória escolar são questões que ainda carecem de respostas. Estar dentro da sala de aula não significa aprender e milhares de alunos provam isso todos os dias, sem livros, sem professores fixos, sem merenda.
O cenário da saúde pública traz elementos ainda mais ásperos. O Sistema Único de Saúde (SUS) é reconhecido internacionalmente como uma das maiores políticas públicas de saúde do mundo, sobretudo por sua concepção baseada na equidade, na integralidade e na universalidade. Uma de suas principais estratégias, a ESF — Estratégia de Saúde da Família —, realiza atendimentos comunitários e domiciliares, alcançando, segundo o Ministério da Saúde, cerca de 80% dos atendimentos básicos. 
No entanto, essa cobertura não é homogênea. Segundo estudo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), publicado em novembro de 2022, 34% da população brasileira não tem acesso a nenhum serviço de atenção básica de saúde por meio da ESF. Isso significa que mais de um terço dos brasileiros vive à margem da estrutura que deveria, em tese, garantir o atendimento primário, preventivo e contínuo. Essa lacuna revela não apenas falhas de gestão e de financiamento, mas também desigualdades estruturais que se perpetuam mesmo dentro de um sistema pensado para combatê-las.
Esses dados não devem ser lidos apenas como estatísticas frias. Eles apontam para uma tensão central do projeto republicano brasileiro: o abismo entre o que se promete e o que se cumpre. A universalização dos serviços públicos continua sendo um ideal — necessário, ético, inadiável —, mas ainda inalcançado. 
O Estado tem, sem dúvida, um papel essencial na mitigação das desigualdades, mas sua atuação é frequentemente limitada por interesses políticos, falta de recursos, burocracias ineficientes e ausência de continuidade nas políticas públicas. Isso faz com que, muitas vezes, o acesso a direitos básicos dependa não do princípio da cidadania, mas do acaso, da sorte geográfica ou da capacidade individual de recorrer à Justiça.
Ainda assim, é preciso reconhecer: mesmo com todas as suas limitações, os serviços públicos no Brasil são a principal — e muitas vezes a única — ponte entre a população mais vulnerável e a possibilidade de uma vida minimamente digna. São eles que asseguram a permanência de crianças na escola, o acesso de mães e pais à vacinação dos filhos, o atendimento médico de quem não pode pagar por planos de saúde ou medicamentos de alto custo. É por isso que sua existência e seu fortalecimento não devem ser vistos como favores do Estado, mas como uma obrigação constitucionalmente assumida. Mais do que isso: devem ser entendidos como uma conquista civilizatória que exige constante vigilância e defesa.
Nesse sentido, o papel da cidadania ativa torna-se central. Lutar por serviços públicos de qualidade é também lutar por uma sociedade mais justa, onde direitos não sejam confundidos com privilégios. Essa luta passa por exigir políticas públicas eficientes, por fiscalizar a atuação dos representantes eleitos, por defender o financiamento adequado das áreas sociais e, acima de tudo, por manter vivo o debate sobre qual país queremos construir. Um Brasil que oferece oportunidades reais para todos ou um país onde direitos fundamentais continuam sendo determinados pela renda?
A resposta a essa pergunta não está apenas nas mãos do Estado, mas também nas escolhas que fazemos como sociedade. A universalização não precisa ser um sonho inalcançável — mas, para se tornar realidade, ela depende do nosso compromisso coletivo com a cidadania.

Autores:
Pedro Corrêa Giron - Graduando em Administração
Luciano Henrique Caixeta Viana - Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Administração de Organizações | FEARP ;  

Referências:

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2023. Rio de Janeiro: IBGE, 2023. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101059.pdf. Acesso em: 22 mar. 2025.

INSTITUTO DE ESTUDOS PARA POLÍTICAS DE SAÚDE (IEPS). 34% da população não tem acesso à Atenção Básica de Saúde, aponta novo estudo do IEPS. São Paulo: IEPS, 2022. Disponível em: https://ieps.org.br/34-da-populacao-nao-tem-acesso-a-atencao-basica-de-saude-aponta-novo-estudo-do-ieps/. Acesso em: 22 mar. 2025.

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