A guerra de meio milênio - o sangue nativo que rega o progresso

A guerra de meio milênio - o sangue nativo que rega o progresso

Para o filósofo e historiador camaronês Achille Mbembe, necropolítica é um mecanismo de poder que, por meio de discursos, define quem pode viver ou pode morrer, ou seja, quais mortes são aceitáveis e não causam comoção no meio social. Ele, que é um estudioso da escravidão, demonstra que tais políticas baseadas no racismo justificam-se em nome de um bem maior: o progresso, a destruição de um “inimigo”, o estabelecimento da paz. Desse modo, a morte passa a ser instrumento de coerção e controle social.

Dentre os diversos exemplos quase cotidianos no Brasil, decidi abordar a questão indígena como tema central do texto, dadas as recentes manifestações indígenas em Brasília contra o PL 490, o qual viola o direito indígena à terra, em junho deste ano. Quase todos que puderam ir à escola conhecem a história: portugueses chegaram ao Brasil em 1500, encontraram os nativos e dominaram o território. Contudo, poucos têm dimensão de tamanho genocídio, que permanece até os dias atuais.

Eram cerca de 8 milhões de pessoas, divididas em aproximadamente 1000 povos, e inúmeras línguas. Muitas sociedades eram complexas, estratificadas, possuíam exércitos e sacerdotes. À mesma época, Portugal possuía aproximadamente 1 milhão de habitantes. A “conquista” não foi gloriosa, como mostram as idealizadas pinturas. Segundo o historiador e líder indígena Ailton Krenak, os portugueses chegaram ao atual Brasil acometidos por escorbuto e em estado de inanição (estado de debilidade), e eram acolhidos pelos indígenas, acostumados à diversidade cultural e interessados pelo novo povo. Ao mesmo tempo, os portugueses questionavam se os nativos possuíam alma e se poderiam ser escravizados.

Estabelecidos no Brasil, os colonizadores implantaram seu sistema produtivo e permitiram a escravidão dos indígenas em nome da guerra justa, pois consideravam-no inimigos da expansão do império cristão. Além disso, espalhavam doenças e manipulavam guerras entre os povos, como forma de controle social, facilitando sua dominação e influência sobre o território. Segundo uma conta do padre José de Anchieta, em 1560, num período de três meses, morreram 30.000 indígenas tupis em todo o litoral.

Darcy Ribeiro, renomado antropólogo brasileiro, conta, em seu livro Os índios e a civilização, como plantadores de cacau atacaram os povos Kamakã e Pataxó, no início do século XX, na Bahia, com o envenenamento de suas águas e o abandono de utensílios contaminados por varíola em seu território. No mesmo século, em 1920, Marechal Rondon criou o Serviço de Proteção ao Índio, o SPI. Contudo, em 1960, funcionários do órgão, juntamente com fazendeiros, presentearam indígenas do povo Cinta-Larga, da região fronteira entre Mato Grosso e Rondônia, com alimentos envenenados com arsênico. O episódio, que matou 3500 pessoas, ficou conhecido como Massacre do Paralelo 11.

Durante a Ditadura Militar, segundo o relatório final da Comissão da Verdade, 8350 indígenas foram mortos. Já em 1993, garimpeiros, que até os dias atuais conflitam com esse povo, dentre outros, assassinaram brutalmente 16 indígenas, no Massacre de Haximu, dentre eles mulheres, crianças, bebês e idosos. Estas histórias são poucas dentre tantas outras, bárbaras, ao longo dos últimos 521 anos. O povo indígena está há meio milênio em guerra, sujeito a ataques e mortes.

Hoje, segundo estudo realizado pelo IBGE, baseado no censo de 2010, restam apenas 305 etnias e 274 línguas nativas, com culturas extremamente atreladas à terra, ao seu território sagrado. O estudo demonstra que 57,7% dos nativos brasileiros moram em terras indígenas, e como isso impacta nos indicadores socioculturais dos povos. Entre os índios que habitam essas áreas, 57,3% falam pelo menos uma língua nativa, o que contrasta com os 9,7% entre os não aldeados (que moram nas cidades).

Além disso, os povos indígenas representam grande parte da luta pela preservação do meio ambiente, em todo o mundo. Segundo a ONG britânica Global Witness, em 2017, um quarto dos 207 ativistas ambientais mortos em todo o mundo pertenciam aos povos originários de seus respectivos países, o que é alarmante, tendo em vista que estes compõem apenas 5% da população mundial. Ainda de acordo com a ONG, o Brasil foi o país mais letal do mundo para ativistas pela Terra em 2017, e o terceiro em 2019.

Portanto, garantir a demarcação de territórios indígenas, direito concebido na Constituição de 1988, é fundamental para a continuidade dos povos, em suas particularidades culturais, além de para a preservação do meio ambiente como um todo. Ainda assim, as terras indígenas permanecem invadidas, o Estado faz “vista grossa” e a mídia pouco noticia. É a vida que não vale, a informação que não vende, a morte que não choca. Tudo, em nome do progresso.

Em fevereiro de 2021, aos 86 anos, morreu, vítima de Covid-19, Aruká Juma, o último ancião do povo Juma, que  já teve cerca de 15 mil membros. Sobrevivente de um massacre na década de 60, deixou três filhas mestiças com outras etnias, e foi sepultado, juntamente com boa parte de sua cultura, sem direito aos ritos tradicionais. Ademais, hoje, cerca de 20 mil garimpeiros ocupam ilegalmente a terra indígena Yanomami na região de Palimiu, em Roraima. Com livre acesso às aldeias, atacam frequentemente, atirando, de seus barcos, no povo à beira do rio e lançando bombas de gás lacrimogêneo, além de contribuírem para a disseminação do coronavírus nas comunidades. O Estado pouco faz para conter as invasões. Até quando o povo indígena terá de sangrar?

 

Texto escrito por Júlia Naomi Viana Hizumi, estudante de Ciências Econômicas na FEA-RP/USP.

Imagem: Freepik

Referências:

GUERRAS do Brasil.doc. Direção Luiz Bolognesi. Produção: Buriti Filmes, 2019. Episódio 1.

<https://www.politize.com.br/necropolitica-o-que-e/>. Acesso em 31 de jul. de 2021.

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<https://oglobo.globo.com/rio/tres-palavras-uma-tragedia-15979452#:~:text=Foi%20a%20varíola.,com%20seus%20vírus%20e%20anticorpos>. Acesso em 31 de jul. de 2021.

<https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-28/brasil-e-o-terceiro-pais-mais-letal-do-mundo-para-ativistas-ambientais-so-atras-de-filipinas-e-colombia.html>. Acesso em 31 de jul. de  2021.

<https://brasil.elpais.com/brasil/2021-06-22/mineracao-e-garimpo-disputam-area-maior-do-que-a-belgica-dentro-da-terra-indigena-yanomami.html>. Acesso em 31 de jul. de 2021.

<https://brasil.elpais.com/brasil/2021-02-19/o-ultimo-anciao-juma-morre-de-covid-19-e-leva-para-o-tumulo-a-memoria-de-um-povo-aniquilado-no-brasil.html>. Acesso em 31 de jul. de 2021.

<https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2021/02/18/apos-morte-do-ultimo-indio-juma-liderancas-associam-covid-19-com-exterminio-de-povos-indigenas.ghtml>. Acesso em 31 de jul. de 2021.

<https://www.brasildefato.com.br/2021/07/11/exercito-e-o-unico-vendedor-de-bombas-utilizadas-por-garimpeiros-para-atacar-indigenas>. Acesso em 31 de jul. de 2021.

 

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