O SUS e a Saúde Mental

O SUS e a Saúde Mental

Introdução

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), um indivíduo mentalmente saudável é aquele que “realiza suas capacidades, pode fazer face o stress normal da vida, trabalhar de forma produtiva e frutífera e contribuir para a comunidade em que se insere”. Em vias gerais, a saúde mental pode definir uma plêiade de estados relacionados ao cognitivo e o emocional de uma pessoa. 

As discussões sobre saúde mental - principalmente sua abrangência -  têm sido âmago na sociedade, visto o aumento de doenças mentais como a depressão e comorbidades. 

No ano de 2019, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) apontou um crescimento observável de diagnósticos no Brasil: no período de seis anos, houve um aumento de 34,2% de casos de depressão diagnosticados. Ainda sob a mesma perspectiva, no mesmo período a OMS estimou que cerca de 5,8% da população brasileira está deprimida. O cenário eclodiu durante o período da pandemia: um estudo realizado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) aponta um crescimento de 90% em diagnósticos de depressão e o dobro de casos de comorbidades comuns como crises de ansiedade e estresse agudo.

Os tratamentos de doenças mentais através de recursos públicos evoluíram substancialmente com o tempo, não apenas em questão de alcance populacional, mas também em características como modernização e humanização. Há cerca de cinquenta ou sessenta anos, instituições psiquiátricas relacionavam-se a tratamentos desumanizados e sem perspectiva de reabilitação psicossocial da população subjugada. 

 

Breve história do tratamento das doenças mentais no Brasil

Acompanhado aos fatos históricos, constarão lembranças de Silvio Yasui, Psicólogo, professor da graduação e da pós-graduação em Psicologia da Unesp – Assis, SP e Doutor em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz.

A efetivação de fato de um movimento ambientado na crítica dos modelos hospitalocêntricos veio no fim da década de 70. O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) expôs ao público críticas e denúncias a respeito das violências e humilhações das redes de assistência, receptáculos de homens, mulheres e crianças - diagnosticados ou não - culminando não raramente no óbito dos internados. 

O ano é 1976. Desço do ônibus na rodovia Presidente Dutra e o motorista me aponta para uma estrada de chão batido. Sigo por ela por uns 3 quilômetros para chegar a uma imensa construção. Na porta a placa: Hospital Psiquiátrico. Sou recebido pela psicóloga que pergunta qual ano que estudo. “– Segundo”, respondo com certo constrangimento. Com um olhar desanimado, ela pede a um auxiliar de Enfermagem que me mostre o hospital. Caminho pelos corredores sentindo náuseas causadas pelo forte cheiro de urina, de fezes e de desinfetante barato. Chego ao pátio. Dezenas de pacientes deitados no chão, muitos seminus. Suas roupas estão quase todas rasgadas, sujas. Tenho a impressão de que são vários mendigos. Ao me verem, aproximam-se, pedem cigarro, dinheiro. Pedem, pedem. Uma solicitação, repetida por muitos chama a minha atenção: “– Me tira daqui!”

No fim da década de 80, é instaurado, na cidade de São Paulo, o primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do Brasil. Ainda neste período, iniciam-se os projetos do Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) no estado de São Paulo, com funcionamento 24 horas, além de associações, residências e cooperativas para seus egressos. Anteriormente à fundamentação do SUS e à constituição vigente, o poder público foi ator majoritário no desmonte de instituições capitalizadoras da loucura, mediante grande enfrentamento da oposição destas. O primeiro projeto de Lei referente à regulamentação dos direitos de pessoas com transtornos mentais foi proposto em 1989. Mas sua promulgação ainda enfrentaria mais de uma década de desafios.

Avançando na história, chega-se à década de noventa. A Carta Magna de 1988 foi promulgada, e com ela a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). O Estado passa a atuar na regulamentação e fiscalização de hospitais psiquiátricos. Ainda diante da obscuridade a respeito da temática, da falta de normatização por parte do Legislativo, e da forte oposição dos hospitais psiquiátricos que lucravam com a loucura, a proposta da reforma psiquiátrica começa a emergir timidamente.

O ano é 1997. Estou a caminho de um hospital psiquiátrico privado para realizar uma avaliação. Faço parte de uma equipe de Secretaria de Estado da Saúde que realizou várias vistorias nos hospitais com o objetivo de classificá-los e enquadrá-los nas, na época, novas normas oriundas da Portaria nº 224, de 29 de janeiro de 1992. São os primeiros movimentos que se fortalecerão poucos anos depois com o Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares (PNASH). Nova longa estrada até chegar ao hospital. Somos recebidos pela direção que se queixa dos baixos valores pagos pelo SUS. Ao entrarmos, percebo que a limpeza recente não oculta o que está impregnado nas paredes: o cheiro de fezes e urina. Novamente, no pátio, os pacientes estão com roupas novas demais para o momento. Ao nos verem, aproximam-se olhando, temeroso o diretor que nos acompanha. Mesmo com sua presença intimidatória, muitos não se acanham e pedem cigarro e dinheiro. Pedem, pedem. Alguns pedem/suplicam: “– Me tira daqui!”

Efetivamente, a normatização final a respeito da proteção e dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais é promulgada apenas na década de 2000, sob a forma da Lei Federal 10.216. Quase meio século de luta em prol da humanização do tratamento de doentes mentais e mais de uma década depois de sua proposição, começa a convergir na atuação do Estado para as diretrizes que se têm hoje. O Ministério da Saúde cria linhas de financiamentos destinados à substituição dos serviços de internação e da expansão da rede de atenção à saúde mental. Deste modo, o Estado insere as questões da reforma psiquiátrica na sociedade civil a partir do momento que passa a garantir acesso ao cuidado comunitário dos doentes mentais em áreas onde este acesso era ínfimo e a única solução conhecida era a internação por tempo indefinido. 

As políticas de expansão da rede de atenção à saúde mental, juntamente com a proposta da reforma ao modelo hospitalocêntrico, é fruto dos esforços coletivos de todas as esferas governamentais junto aos profissionais atuantes na área.

Destaca-se aqui um marco no processo da reforma psiquiátrica. A III Conferência Nacional de Saúde Mental em 2001 garantiu um processo democrático no firmamento das diretrizes que mudarão a forma como é oferecido o acesso à saúde mental no Brasil, incluindo a participação de usuários e de seus familiares. 

Em 2002 inicia-se o processo de redução de leitos psiquiátricos criando-se um modelo gradual e colaborativo, ainda tomando forma desde a década de 2000, de atenção à saúde mental, incluindo projetos de avaliação e controle da qualidade do tratamento oferecido, programas de ressocialização e emancipação de pessoas com transtornos mentais e serviços de residências terapêuticas.

Em 2021, o escopo do trabalho não está sequer perto de sua conclusão. As redes de atenção psicossocial enfrentam desafios de diversas naturezas: o combate às drogas, o acesso aos povos indígenas, crises orçamentárias, despreparo no atendimento emergencial em Hospitais Gerais, preconceito e a continuação do árduo processo de desinstitucionalização e de atenção primária em unidades básicas. Conquanto, em detrimento da insistência das instituições particulares em encarcerar o vício e a loucura como solução do problemas - o que acontece até hoje - a ação pública continua em busca das respostas na complexa travessia da humanização das doenças mentais, no compartilhamento das experiências e do saber e no aprimoramento do cuidado com a população subjugada.  

 

Texto escrito por Sabrina Galatti Rosa, estudante de Administração na FEA-RP/USP.

Imagem: Freepik

Referências:

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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Pesquisa Nacional de Saúde 2019: Percepção do estado de saúde, estilos de vida, doenças crônicas e saúde bucal  [Internet]. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2019. 105p. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101764.pdf>. Acesso em: 19 de maio. 2021.

 Filgueiras A, Stults-Kolehmainen M. Risk Factors for Potential Mental Illness Among Brazilians in Quarantine Due To COVID-19. Psychological Reports. Fev 2021. doi:10.1177/0033294120976628

Ministério da Saúde. Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental no Brasil [Internet]. Brasília, 2005. Disponível em: <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Relatorio15_anos_Caracas.pdf>. Acesso em: 18 de maio.2021.

Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS - Saúde Mental Volume 5 [Internet]. Brasília, 2015. Disponível em: <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/saude_mental_volume_5.pdf>.  Acesso em 18 de maio.2021.

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