Cotas e servidores públicos: há representatividade étnico-racial na administração pública brasileira?

Cotas e servidores públicos: há representatividade étnico-racial na administração pública brasileira?

No ano passado, a Magalu, gigante do varejo, abriu o primeiro processo de trainee exclusivo para pessoas negras. O anúncio do processo seletivo gerou grandes debates nas redes sociais mais informais e também naquelas direcionadas ao mercado de trabalho. Com a grande especulação, foram até levantadas hipóteses de que a ação da empresa era inconstitucional ou uma espécie  de discriminação com candidatos de outras etnias. Ainda assim, eram realmente só hipóteses. No entanto, em que nível está o debate da representatividade étnico-racial nos cargos de servidores públicos no Brasil? 

Para contextualizar, é necessário retornar alguns marcos históricos: em 2010, foi publicado o Estatuto da Igualdade Racial por meio da lei n⁰ 12.288, um documento que conta com 65 artigos que irão abranger os diversos componentes que moldam a qualidade de vida da população negra, sendo assim, uma espécie de levante que se propõe a reparar séculos de desamparo à população negra escravizada e seus descendentes. 

A Constituição de 67 já previa a ilicitude do "preconceito quanto à raça", restringido apenas a essa designação legislativa que dava aos magistrados a liberdade de aferir ocorrência ou não de crime. Mas, quais eram o perfil desses legisladores? Quais critérios eles utilizavam de base para argumentar? Que influências no judiciário teriam eles seguido para elaborar, por meio dos relatos de injúria racial, a negação ou a confirmação das situações discriminatórias? 

Foi resultado da pressão do movimento negro a partir dos anos 70 e dos programas de promoção de direitos humanos da ONU que a questão da igualdade racial atingiu espaço consolidado na atual Constituição Federal de 1988, no artigo 5⁰, inciso XLII: "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei." No entanto, a existência de estatutos e a constituição não são o único instrumento capaz de amenizar desigualdades que afetam a estrutura da sociedade brasileira. Em "Racismo Estrutural", o advogado e professor Silvio de Almeida explica que essa modalidade do racismo implica a longo prazo e não está sempre explícita, contudo, por estar enraizado nas relações sociais, demonstra-se recorrente na linguagem, nos mapas da violência e principalmente na inserção no mercado de trabalho. Desse modo, pode aparecer tanto em instituições privadas quanto públicas.

Dada as privações históricas e a presença tímida em cargos públicos da população preta e parda no país - ainda que, segundo o IBGE, sejam 56% dos brasileiros -,  a lei n⁰ 12.990/2014, promulgada pela então presidente Dilma Rousseff, dispôs as ações afirmativas: "Art. 1º: Ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, na forma desta Lei." 

A sanção dessa lei carrega por si só muitas conquistas, de início, por uma das duas mulheres que em conjunto assinaram a lei: Luiza Bairros,. militante do Movimento Negro Unificado, administradora, doutora em Sociologia e ex-ministra da Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (SEPPIR). Luiza era ativa nas discussões políticas acerca das desigualdades raciais a nível nacional e internacional, portanto, a posição em que chegou foi um marco na alta administração pública federal. Junto a Bairros, poucos são os nomes de ministros negros nos ministérios ou nos supremos tribunais em comparação a massiva participação de pessoas brancas em cargos de importância semelhante. Ainda assim, os cargos ministeriais são apenas uma parcela daqueles que atuam na  gestão pública como servidores. 

Qual é então o perfil étnico-racial da atual administração pública? Bom, essa é uma pergunta difícil de responder, visto que, segundo o levantamento do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), embasado na Relação Anual de Informações Sociais (Rais) de 2018, 92,7% dos servidores públicos indicaram a opção "não informada" no quesito cor/raça. Apesar dessa porcentagem, o dado é influenciado pela omissão de servidores dos municípios e estados, contudo, daqueles que disponibilizam, cerca de 3/5 se autodeclararam brancos. 

Então, como pensar e propor políticas públicas quando não se tem dados básicos para embasar planos e leis? O simples fato da omissão na autodeclaração já alerta a um sintoma mórbido do racismo estrutural: o "céu nublado" no que se refere a identificação, decorrência do propagado mito da democracia racial no Brasil. Mas a discussão não termina com tanto pessimismo. Um ótimo exemplo da aplicação das ações afirmativas, as cotas, está sendo obtido nas universidades públicas do país, que progressivamente tentam reparar heranças históricas de marginalização e racismo. 

Seguindo a tendência positiva de reconhecimento das lacunas de representatividade iniciadas pelo exemplo da Magalu, está a Vetor Brasil, organização da sociedade civil (OSC) voltada para a administração pública, que lançou o "Programa Ubuntu", com vagas exclusivas para pessoas negras. Por fim, ainda existe um enorme caminho a ser percorrido pela gestão pública quanto a esse déficit, portanto, a omissão não pode ser mais uma opção na promoção da igualdade racial no Brasil. 

 

Texto escrito por Natália Abreu, estudante de Administração na FEA-USP/RP

Imagem: Canva

Referências:

ALMEIDA, Silvio de.Racismo estrutural. Editora Jandaíra, 2019.

BRASIL. Lei n⁰ 12.990 de 9 de junho de 2014. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12990.htm>. Acesso em: 08 de out. de 2021.

IBGE. Cor e raça. Disponível em: <https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18319-cor-ou-raca.html>. Acesso em: 08 de out. de 2021.

POLITIZE. Estatuto da Igualdade Racial: o que diz e qual a sua importância?. Disponível em:<https://www.politize.com.br/estatuto-da-igualdade-racial/>. Acesso em: 08 de out. de 2021.

POLITIZE. Artigo quinto: Criminalização do racismo. Disponível em: <https://www.politize.com.br/artigo-5/criminalizacao-do-racismo/>. Acesso em: 08 de out. de 2021.

UOL. "Brasil não sabe a cor de 93% dos servidores públicos, e isso afeta a inclusão.” Disponível em: <https://www.google.com/amp/s/economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/10/03/raca-cor-servico-publico-mercado-trabalho-informacoes-dados-rais.amp.htm>. Acesso em: 08 de out. de 2021.

SANTOS, Anderson P.; DIANA, Gilson M. O perfil racial nos quadros da administração pública no Brasil: um primeiro balanço dos efeitos da reserva de vagas para negros em uma organização de segurança pública. Revista Servidor Público, Brasília, out/dez, 2018.

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